Mundo de ficçãoIniciar sessãoA noite caiu como um véu denso sobre Arraial da Costa. A cidade parecia mais silenciosa do que o normal, como se até as ondas tivessem decidido respeitar os pensamentos de Isadora.
Ela sentou-se na poltrona da sala, o envelope de Lorenzo sobre a mesinha, ao lado de uma caneca de chá já esquecida. A foto que ele deixara havia sido colocada em um pequeno porta-retrato improvisado, ao lado do livro que ele não levara.
Aquela memória — os três juntos no farol — ainda latejava. Elisa, com seus cabelos cacheados voando ao vento. Lorenzo, com um sorriso que raramente mostrava agora. Ela mesma, com olhos que ainda não conheciam o gosto da decepção.
Quando o celular vibrou sobre a mesa, o som abrupto a fez estremecer. Era tarde. O número era desconhecido.
Atendeu hesitante.
— Alô?
Silêncio.
— Isadora Almeida? — disse, por fim, uma voz feminina, levemente trêmula.
— Sim. Quem fala?
— Você não me conhece... Mas eu soube que Lorenzo voltou.
Isadora ficou imóvel.
— Quem é você?
— Eu me chamo Helena. É sobre ele. Eu preciso te contar uma coisa... sobre o que aconteceu com a irmã dele.
O silêncio que se seguiu foi pesado, quase palpável.
— A Elisa?
— Sim. Ele... não contou tudo. E acho que você deveria saber.
Isadora sentiu um frio súbito percorrer a espinha. A lembrança de Elisa era sagrada. Intocável. Lorenzo falara tão pouco sobre a morte dela que, mesmo anos depois, a sensação era de que havia partes da história que jamais foram desenterradas.
— Onde nos encontramos? — disse Isadora, num impulso que nem ela entendeu.
—
A cafeteria da Praça Central estava quase vazia quando Isadora chegou. Escolheu uma mesa perto da janela, onde podia ver os faróis dos carros refletindo na calçada molhada. A cidade parecia suspensa no tempo.
Helena chegou minutos depois. Tinha aparência comum — trinta e poucos anos, cabelos escuros presos em um coque desleixado, roupas simples, quase anônimas. Mas seus olhos denunciavam uma urgência inquieta.
— Obrigada por vir — disse ela, sentando-se com cuidado.
Isadora a observava com atenção. Tentava decifrar se estava diante de uma ameaça, ou de um eco.
— Você conhecia a Elisa?
Helena assentiu.
— Fomos colegas na universidade. Ficamos próximas nos últimos meses antes do... do acidente.
Isadora esperou.
— Eu não estou aqui pra acusar o Lorenzo — disse Helena, rapidamente. — Mas há coisas que ele nunca disse. Nem pra família. Coisas que, talvez, o estejam corroendo por dentro até hoje.
— Como o quê?
Helena mordeu o lábio inferior.
— A Elisa estava doente. Ela escondeu de todo mundo, menos de mim e... de Lorenzo. Estava com depressão severa. E no dia do acidente... ela deixou uma mensagem. Para ele.
Isadora sentiu o estômago revirar.
— Que tipo de mensagem?
Helena hesitou, então tirou do bolso uma folha dobrada. Era uma cópia. O papel estava desgastado nas bordas, como se tivesse sido lido muitas vezes.
— Eu guardei isso por anos. Achei que era a hora.
Isadora leu. A letra era reconhecível. E a dor, tangível.
“Lorenzo, você sempre foi meu ponto de apoio. Mas agora, mesmo com tudo o que você faz, eu continuo afundando. Eu sei que você vai se culpar. Mas eu preciso ir. Prometa que vai perdoar a si mesmo.”
Isadora leu uma vez, depois de novo. E mais uma.
— Ele nunca falou disso — sussurrou.
— Porque carrega isso como se fosse culpa. Como se pudesse ter evitado.
Helena respirou fundo, então pousou a mão sobre a mesa, cautelosa.
— Eu não sei o que houve entre vocês. Mas ele voltou agora, talvez, porque não consegue mais sustentar tudo isso sozinho.
Isadora sentiu o peito apertado.
E se Lorenzo estivesse, de fato, quebrado por dentro?
E se o silêncio dele fosse mais do que orgulho? E se fosse medo?
—
No dia seguinte, o céu amanheceu limpo, como se o universo estivesse fazendo as pazes com a cidade. Isadora abriu a livraria cedo, mas pouco fez. Releu a carta. Pensou em Helena. Pensou em Lorenzo.
Por volta das dez, o sino da porta tocou.
Ela se virou com o coração acelerado — mas era Cecília.
— Bom dia. Ou... bom dia?
Isadora forçou um sorriso.
— Confuso. Mas dia.
Cecília a olhou com desconfiança.
— Você tem cara de quem viu um fantasma, brigou com ele, depois tomou chá juntos.
Isadora bufou, rindo sem vontade.
— Quase isso.
Contou tudo. Sobre Helena, a carta, a conversa. Cecília ouviu em silêncio, apenas confirmando com a cabeça de tempos em tempos.
— E agora? — perguntou, por fim.
— Não sei. Parte de mim quer entender o que Lorenzo está carregando. A outra quer continuar evitando.
— E qual vai vencer?
— Aquela que estiver menos cansada, acho.
Cecília levantou-se, ajeitando a blusa colorida.
— Então reza pra ter boas noites de sono, amiga.
—
Naquela noite, Lorenzo estava sentado no farol antigo, o mesmo da foto. As pedras ainda guardavam o cheiro da maresia. O vento bagunçava sua jaqueta fina, mas ele não parecia notar. Havia algo no céu daquela noite — uma promessa que ele não sabia se merecia.
Quando ouviu passos atrás de si, não se virou de imediato.
— Você ainda vem aqui? — perguntou Isadora, com voz baixa.
Ele sorriu, sem humor.
— Tem lugares que a gente nunca deixa, mesmo quando vai embora.
Ela sentou-se ao lado dele, mas manteve distância.
— Por que não me contou sobre a Elisa?
Lorenzo fechou os olhos. Por um momento, pensou em mentir. Em dizer que não sabia do que ela falava. Mas então, exausto, apenas disse:
— Porque dói. Porque falar sobre ela é como... abrir uma ferida que nunca cicatriza.
— Mas esconder não a cura.
Ele assentiu.
— Eu achei que se fingisse que estava tudo bem... uma hora ia ficar.
— Não ficou.
Silêncio.
— Eu li a carta — disse ela.
Ele virou o rosto para ela, os olhos marejando.
— Você devia me odiar.
— Eu odiava. Agora... só não sei o que fazer com tudo isso.
Ela então estendeu a mão, apenas tocando de leve o braço dele.
— Você pode começar parando de fugir.
—
Lorenzo abre a boca para responder, mas antes que consiga, o celular dele vibra. Uma mensagem curta:
“Precisamos conversar. É urgente. — G.”
Ele empalidece. Isadora nota.
— Lorenzo... quem é G?
Ele hesita.
— Alguém do meu passado. Que deveria ter ficado lá.







