Sombras na Maré

O som das ondas quebrando nas pedras abaixo do farol era o único ruído constante naquela noite úmida.

Isadora ainda estava ao lado de Lorenzo, sentada com os joelhos abraçados contra o peito, olhando o mar como se ele pudesse oferecer respostas. O vento do alto do penhasco era mais frio ali, trazendo com ele memórias que insistiam em doer.

Ela notou a mudança sutil no rosto dele assim que a notificação do celular apareceu. Era quase imperceptível — um leve tensionar da mandíbula, o olhar que se desviava, o corpo que enrijeceu. Mas ela conhecia aquele tipo de silêncio.

— Lorenzo... quem é "G"?

Ele demorou a responder. A tela do celular continuava acesa, revelando apenas o nome da pessoa e o trecho da mensagem.

“Precisamos conversar. É urgente.”

Ele finalmente bloqueou a tela e guardou o aparelho no bolso, sem encará-la.

— Alguém que eu esperava nunca mais ver.

Isadora esperou que ele continuasse. Não pressionou. Aprendera que algumas respostas vinham mais quando o silêncio era acolhido, não invadido.

Ele, porém, manteve-se em silêncio por tempo demais.

— É alguém que me machucou? — ela perguntou, mais suavemente do que pretendia.

Lorenzo a olhou, finalmente. Seus olhos escuros estavam turvos, como se carregassem lembranças que ele ainda não conseguia nomear.

— Não. Mas é alguém que pode... atrapalhar as coisas. Aqui. Com você.

Ela arqueou uma sobrancelha.

— Nós temos alguma coisa?

— Ainda não. Mas... se depender de mim, teremos.

As palavras pairaram entre eles como a maré subindo lentamente. Não vinham de um lugar impulsivo. Eram cruas, honestas, carregadas de hesitação, mas também de verdade.

Isadora desviou o olhar, o coração acelerado. Não sabia se estava pronta. Mas também não sabia se queria que ele recuasse.

— Você vai encontrá-la?

— Preciso entender o que ela quer.

Ela assentiu.

— Mas se isso for algo que me afeta, eu quero saber. Não me proteja. Não me esconda.

Lorenzo suspirou, como quem carrega pedras nas costas.

— Eu não quero te machucar de novo, Isa.

— Então não suma. Não dessa vez.

Na manhã seguinte, Lorenzo saiu cedo. Pegou o carro da mãe emprestado e dirigiu sem rumo certo por algum tempo, apenas para pensar. Acabou estacionando diante de uma cafeteria afastada do centro, onde ninguém o reconheceria.

“G” era Gabriela.

Não Gabriel — esse era outro nome, outro fantasma, do qual ele só ouvira falar, mas nunca conhecera pessoalmente. Gabriela fora um capítulo breve, mas turbulento, de sua vida em Lisboa. Uma mulher intensa, impulsiva, e com uma habilidade cruel de manipular emoções.

Eles haviam trabalhado juntos em um projeto de revitalização urbana. O envolvimento foi rápido, quase inevitável — e terminou com ela desaparecendo do projeto após uma crise, deixando Lorenzo com problemas no escritório, uma denúncia falsa por negligência e a sensação de que havia algo mais naquela mulher do que ele conseguira ver a tempo.

Ele não a via há quase dois anos.

E agora, ela estava aqui.

Ou pelo menos, perto o suficiente para mandar mensagens.

Ele ainda não havia respondido.

Pegou o celular, encarou a notificação, e finalmente digitou:

“Onde e quando?”

A resposta chegou segundos depois.

“Hoje. 16h. No bar antigo da marina.”

Lorenzo apagou a tela e passou as mãos pelo rosto.

Parte dele queria proteger Isadora de tudo aquilo. A outra parte sabia que não podia mais construir vínculos sobre silêncio.

Isadora passou a manhã distraída na livraria. Tentava ler, mas os olhos escorregavam pelas palavras como se a história nas páginas não tivesse voz. O nome “G” voltava à sua mente como um sussurro incômodo.

Por volta das onze, Cecília apareceu com duas sacolas de flores e um olhar que dizia: confessa ou eu invado seus pensamentos.

— E aí? Já sabe quem é a tal "G"? — perguntou sem rodeios.

Isadora balançou a cabeça.

— Ainda não. Mas ele vai se encontrar com ela hoje.

— E você está bem com isso?

Ela suspirou.

— Não. Mas confio nele. Ou quero confiar. Não sei. Está tudo... confuso.

Cecília largou as sacolas e a puxou para um abraço repentino.

— Você merece um amor que fique, Isa. Não um que apareça e desapareça como névoa.

— E se ele for os dois?

— Então que seja uma névoa teimosa. Daquelas que volta toda manhã, até você aprender a respirar nela.

Isadora sorriu. Cecília tinha esse dom: transformar caos em poesia.

Lorenzo chegou à marina minutos antes do horário marcado. O bar antigo ainda tinha a mesma fachada descascada, as cadeiras de madeira gasta, o cheiro de sal e cerveja velha. Ele escolheu uma mesa perto da janela, de onde podia ver os barcos dançando preguiçosamente nas águas calmas.

Gabriela chegou com a mesma presença que sempre tivera — intensa, enigmática, como uma tempestade se aproximando no horizonte. Cabelos loiros presos num coque bagunçado, blazer bege, olhos calculistas.

— Lorenzo — disse ela, como se fosse natural estarem ali, depois de tudo.

— Gabriela.

Ela se sentou sem convite, cruzando as pernas com elegância artificial.

— Você parece bem. Melhor do que da última vez.

— E você... continua igual. Isso não é elogio.

Ela sorriu.

— Justo. Mas vim em paz. Juro.

Ele não disse nada.

— Estou de passagem — continuou ela. — Mas ouvi dizer que você estava por aqui. E achei que... precisávamos encerrar as pendências.

— Que pendências?

— Você nunca quis saber o que aconteceu de verdade. Só fugiu.

Lorenzo a encarou, cético.

— Porque confiar em você era um risco. E ainda é.

— Talvez. Mas você devia ouvir. Pelo menos para entender por que fui embora daquele jeito.

Ele respirou fundo. Parte dele queria levantar e ir embora. A outra... queria, de fato, entender.

— Fala.

Gabriela mexeu lentamente na xícara de café, como se as palavras que prestes a dizer precisassem de tempo para se dissolverem no silêncio.

— Eu não fugi de você, Lorenzo — começou, encarando a espuma na bebida. — Eu fugi de mim mesma.

Ele arqueou uma sobrancelha, sem demonstrar simpatia.

— Isso deveria me tranquilizar?

Ela soltou um riso fraco.

— Não. Mas talvez te ajude a entender por que tudo desmoronou tão rápido.

Ele permaneceu calado. Gabriela sempre fora assim — caótica, intensa, mas com uma maneira quase hipnótica de envolver os outros. Era fácil se perder nela. O difícil era sair ileso.

— Na época do projeto, eu estava... quebrando — ela continuou. — Te falei que tomava remédios. Mas omiti que havia tido uma crise grave meses antes. Estava instável. Mal dormia. Achava que dava conta de tudo. Achei que você me salvaria.

Lorenzo desviou o olhar para a janela, onde os mastros dos barcos balançavam ao vento. A palavra “salvar” o atingiu de um jeito estranho. Era exatamente o que ele tentava não fazer agora com Isadora: salvar, curar, consertar. Não era justo com ela. Nem consigo mesmo.

— A denúncia que você recebeu — Gabriela disse com cuidado — não veio de mim.

Lorenzo virou-se, surpreso.

— Como assim?

— Um colega do escritório fez isso. Por vingança. Eu havia recusado uma proposta dele. Ele sabia que nós dois estávamos envolvidos e aproveitou a minha saída repentina pra te incriminar. Eu descobri tarde demais. Quando tentei consertar, você já tinha sumido de Lisboa.

Lorenzo permaneceu imóvel. Aquilo reorganizava uma parte do passado que ele havia selado com raiva. Uma raiva que, agora, parecia deslocada.

— Por que me contar isso agora?

Gabriela o observou com um misto de arrependimento e algo mais suave — talvez respeito.

— Porque soube que você voltou. E... alguém me disse que está envolvido com uma mulher. Que tem olhos tristes e um jeito de guardar o mundo dentro do peito.

Ele fechou os olhos por um segundo. Não precisava ouvir mais para saber que estavam falando de Isadora.

— Você veio por ela?

— Vim pra te libertar disso — disse, com sinceridade. — Se ainda acha que estou te segurando em alguma sombra, é hora de soltar. E deixar você viver algo que preste.

Lorenzo encarou Gabriela, surpreso com o tom. Pela primeira vez, ela não parecia agindo por interesse. Era quase... humana.

— Você mudou.

Ela sorriu, mas foi um sorriso cansado.

— Todos mudamos. A diferença é que nem sempre é visível por fora.

Ela se levantou, ajeitou a bolsa no ombro e o olhou uma última vez.

— Cuida dela. Mesmo que seja só estando por perto.

E então, foi embora.

Lorenzo ficou ali por mais alguns minutos, digerindo tudo. A revelação da denúncia, a despedida sem exigências, o nome de Isadora surgindo em bocas que ele nem conhecia. O mundo parecia pequeno demais para esconder as intenções.

Ao sair, o céu estava começando a mudar — tons de cobre e azul manchado se espalhavam sobre o horizonte.

Ele sabia o que precisava fazer.

Isadora terminava de organizar a vitrine da livraria quando o som do sino da porta anunciou sua chegada. Ao vê-lo, ela parou, esperando o pior — ou pelo menos, algo difícil de digerir.

Mas Lorenzo estava diferente. Não mais tenso, nem evasivo. Tinha um olhar calmo, como quem havia, enfim, tomado uma decisão.

— Podemos conversar? — perguntou ele, e ela assentiu, conduzindo-o até a mesa do fundo.

Lorenzo terminou de contar tudo. Sobre Gabriela. Sobre Lisboa. A acusação. A visita. A despedida.

Isadora permaneceu em silêncio. A xícara entre as mãos já esfriara, mas ela continuava segurando como se buscasse alguma forma de ancorar o corpo ao presente.

— Não sei bem o que fazer com tudo isso — ela disse por fim, olhando pela janela. — Acho que... estou tentando aprender a lidar com a dor dos outros sem deixar a minha sangrar de novo.

Lorenzo assentiu, os olhos voltados para ela com respeito, não cobrança.

— Eu não espero que você me acolha de imediato — ele disse. — Só quero estar por perto. Como... companhia. Se você permitir.

Isadora desviou o olhar para ele, e algo em sua expressão suavizou. Como se reconhecesse ali, pela primeira vez, não o homem que partiu, mas o garoto que um dia sentou ao lado dela no farol e dividiu silêncios confortáveis.

— Eu lembro de quando você passava as tardes lendo comigo na praia — ela murmurou. — Você sempre dizia que o vento deixava os livros mais poéticos.

Lorenzo sorriu, um sorriso melancólico, verdadeiro.

— E você odiava areia nas páginas.

— Ainda odeio.

Riram juntos, pela primeira vez. Baixo. Tímido. Mas real.

Isadora olhou para as mãos dele, que descansavam sobre os joelhos. Por um segundo, quis tocá-las. Depois hesitou. E então não tocou. Mas o desejo estava lá — visível apenas no silêncio entre os dois.

— Se você vier aqui amanhã — disse ela, com suavidade — posso separar um livro que tem um farol na capa. Vai te lembrar da gente.

— Pode não ser só um livro?

Ela ergueu o olhar, surpresa.

— Pode ser também um café. Só isso. Um café e silêncio, se for o que você quiser — completou ele, com um tom gentil, sem pressa.

Ela assentiu devagar, e pela primeira vez em anos, algo dentro dela não se retraiu diante da aproximação.

Talvez porque ali não havia promessa. Havia presença.

Naquela noite, Isadora voltou para casa e se deitou mais tarde do que o habitual. Leu por longas horas, sem realmente absorver as palavras. Em algum momento, sentou-se ao lado da janela, onde o vento fazia a cortina dançar, e apenas ficou olhando o céu.

Pensou na Elisa. Pensou em como ela e Lorenzo dividiam aquela ausência silenciosa. Pensou em como era estranho — e reconfortante — ter alguém que carregava a mesma cicatriz.

Na manhã seguinte, ela acordou com o sol batendo suave na parede. Colocou a chaleira no fogo e abriu a porta da frente da livraria para receber o ar salgado do dia.

No chão, logo abaixo do tapete, havia um envelope.

Sem remetente. Sem assinatura. Apenas uma folha de papel marfim com uma caligrafia precisa.

Ela leu a frase em voz baixa, os dedos tremendo levemente.

“Nem todo passado fica onde você deixou.”

E, abaixo, escrito à mão com letras pequenas:

Gabriel.

O papel escorregou de seus dedos, pousando devagar no chão de madeira.

Ela ficou ali, imóvel, o coração retumbando nos ouvidos.

A brisa do mar entrou pela porta aberta. Mas dessa vez, não trouxe leveza.

Trouxe um aviso.

Continue lendo este livro gratuitamente
Digitalize o código para baixar o App
Explore e leia boas novelas gratuitamente
Acesso gratuito a um vasto número de boas novelas no aplicativo BueNovela. Baixe os livros que você gosta e leia em qualquer lugar e a qualquer hora.
Leia livros gratuitamente no aplicativo
Digitalize o código para ler no App