A presença da esposa

Ágata já estava há algumas semanas no escritório quando percebeu que aquela paz tinha prazo curto. Até então, o ambiente era organizado, silencioso e eficiente. Henrique mantinha uma postura profissional, respeitosa, e a rotina fluía com naturalidade. Mas tudo mudou no dia em que ela apareceu.

A porta de vidro se abriu sem aviso prévio.

A mulher entrou com passos firmes, salto alto ecoando pelo chão claro do escritório. Elegante, bem vestida, maquiagem impecável e olhar afiado. Não precisou de apresentações. A energia que trazia consigo anunciava quem era.

— Bom dia — disse, sem sorrir.

Henrique levantou-se imediatamente.

— Você não avisou que viria — comentou, visivelmente surpreso.

— Não achei necessário — respondeu, enquanto os olhos percorriam o ambiente… até pararem em Ágata.

O olhar demorou mais do que deveria.

Ágata sentiu o corpo enrijecer. Não havia feito nada, mas a sensação era de estar sendo avaliada, medida, julgada. Levantou-se educadamente.

— Bom dia, senhora. Sou Ágata, assistente do Henrique.

A esposa apenas assentiu com a cabeça, sem responder. Aproximou-se da mesa do marido, colocou a bolsa sobre ela e cruzou os braços.

— Então é você — disse, finalmente, com um tom neutro demais para ser educado.

Henrique pigarreou.

— Amor, a Ágata é extremamente competente. Foi uma contratação necessária.

— Imagino — respondeu ela, olhando novamente para Ágata, agora com um leve sorriso frio nos lábios.

O clima ficou pesado. O ar parecia mais denso, mesmo com o ar-condicionado ligado. Ágata voltou a se sentar, focando no computador, fingindo não sentir o desconforto que subia pela espinha.

A esposa permaneceu ali por alguns minutos, falando sobre horários, compromissos familiares, atrasos e ausências. Cada frase carregava uma cobrança velada. Cada olhar lançado em direção a Ágata parecia um aviso silencioso.

Antes de sair, ela se virou mais uma vez.

— Espero que você saiba o seu lugar — disse, olhando diretamente para Ágata.

Henrique tentou intervir.

— Isso não foi necessário.

— Foi sim — respondeu ela, abrindo a porta. — Muito necessário.

Quando a porta se fechou, o silêncio tomou conta do escritório.

Ágata manteve a postura, mas por dentro algo se remexia. Ela conhecia aquele tipo de olhar. Já tinha vivido relações onde a culpa recaía sempre sobre a mulher errada.

Henrique passou a mão pelo rosto, visivelmente incomodado.

— Sinto muito por isso — disse. — Ela anda… difícil.

Ágata apenas assentiu.

— Está tudo bem. Vim para trabalhar.

Mas, naquele instante, ambos sabiam:

a presença da esposa não era apenas física.

Ela seria uma sombra constante.

E onde há sombra… a luz sempre corre perigo.

A partir daquele dia, as visitas de Diana se tornaram frequentes. Demasiadamente frequentes.

Ela aparecia sem avisar, em horários aleatórios, como quem procura algo que nunca esteve ali. Circulava pelo escritório com passos calculados, abria gavetas, observava mesas, analisava telas de computador. Sempre havia uma desculpa. Um documento esquecido, um contrato, uma assinatura. Mas Ágata sentia. Não era sobre papéis. Era vigilância.

Ágata sempre foi cuidadosa com sua aparência. Na loja de EPI’s, vestia-se de forma funcional, quase invisível. Jeans, camiseta simples, coturno. Ali, precisava se encaixar no ambiente bruto, prático, masculino. No escritório, tudo mudou.

Ela renovou o guarda-roupa com discrição e elegância. Vestidos de corte reto que marcavam a cintura, camisas de tecido leve que valorizavam os seios fartos sem vulgaridade, calças sociais que acompanhavam as curvas das coxas firmes. Saltos médios, maquiagem suave, tranças sempre bem cuidadas. Sua pele negra parecia ainda mais luminosa sob a luz branca do escritório.

Nada era exagerado. Tudo era postura, presença, identidade.

E isso incomodava.

Diana observava cada detalhe. Os olhares demorados, os sorrisos contidos, o jeito confiante com que Ágata caminhava pelo espaço. Nunca dizia diretamente, mas deixava claro em pequenos gestos, comentários atravessados, silêncios carregados. Muitas vezes, saía batendo a porta, sem se despedir.

O clima se tornava pesado sempre que ela aparecia.

Até que um dia, depois de mais uma dessas visitas tensas, Ágata respirou fundo e tomou coragem.

— Henrique… talvez o melhor fosse me dispensar — disse, com a voz baixa, mas firme.

— A convivência entre você e sua esposa parece piorar por minha causa. Eu não quero ser motivo de conflito.

Ele levantou-se imediatamente, como se aquelas palavras o tivessem atingido no peito.

— Não — respondeu, rápido demais.

— Não diga isso.

Ágata manteve o olhar sério.

— Eu entendo o desconforto dela. Sei como é estar no lugar errado e levar a culpa.

Henrique se aproximou da mesa dela, apoiou as mãos sobre o tampo e falou sem hesitar, sem medir o peso do que dizia:

— Se você se demitir… eu me separo dela.

O silêncio caiu como um impacto.

Ágata sentiu o coração disparar. Aquilo não era apenas uma frase dita no calor do momento. Era intenso. Perigoso. Definitivo demais.

— Henrique…

— ela tentou dizer algo, mas não encontrou palavras.

— Você não é o problema — completou ele, com o olhar firme.

— Nunca foi.

Naquele instante, Ágata entendeu que já não se tratava apenas de trabalho. Algo havia sido cruzado. Um limite invisível, porém irreversível.

E, pela primeira vez desde que entrou naquele escritório, sentiu medo.

Henrique respirou fundo antes de continuar. Parecia cansado daquele assunto, como quem revive um desgaste antigo.

Ele explicou que Diana sempre foi assim. Ciumenta, desconfiada, mesmo antes de qualquer motivo existir. Qualquer mulher ao redor dele era vista como ameaça. Não importava idade, cargo ou contexto. Ao contrário dele, que era naturalmente simpático, acessível e prestativo, Diana carregava uma postura distante. Dona de uma boutique, mantinha sempre o nariz erguido, o tom superior, como se o mundo estivesse constantemente em dívida com ela.

— Ela nunca foi muito fácil de lidar — disse, com a voz baixa.

— Sempre teve dificuldade em se sentir segura.

Henrique não precisou dizer o que Ágata já havia percebido sozinha. O corpo de Diana sempre foi motivo de insatisfação para ela mesma. Acima do peso, com a barriga que tentava esconder sob roupas estruturadas, Diana se comparava em silêncio. E, ao se sentir inferior, reagia pisando, diminuindo, tentando controlar o ambiente ao redor.

— O ciúme dela não é sobre você — continuou Henrique.

— É sobre ela.

Ele fez questão de deixar claro que nunca ultrapassou limites. As conversas entre eles sempre foram abertas, respeitosas. Falavam sobre trabalho, decisões da empresa, caminhos a seguir. Henrique pedia a opinião de Ágata porque confiava em sua inteligência, em sua visão administrativa. E isso fazia com que ela se sentisse importante, valorizada, parte real do crescimento do negócio.

Ágata jamais o olhou com maldade. Nunca confundiu espaço profissional com intenção. Mas Diana parecia enxergar perigo até onde não existia.

Ela passou a fingir uma cordialidade desconfortável. Sentava-se próxima de Ágata, puxava assuntos aleatórios, permanecia ali por horas. Observava cada detalhe: o tom da maquiagem, o corte da roupa, o jeito de se movimentar. O clima estava pesado, sufocante.

Henrique sempre foi firme.

— Diana não tem poder sobre minhas escolhas profissionais — dizia.

— Cada um cuida da própria empresa. Eu nunca me meti nos negócios dela, e ela não deve se meter nos meus.

Ele garantiu que Ágata poderia ficar tranquila. Que nada do que Diana fizesse afetaria seu trabalho.

Mas afetou.

Em uma das visitas, Diana foi direta. Disse que Ágata não deveria mais usar vestidos no escritório. Que seu corpo chamava atenção demais. Que aquilo era inadequado.

Não foi um pedido. Foi uma imposição.

Quando Henrique soube, o conflito ficou evidente. Pela primeira vez, Ágata sentiu que aquela tensão não era mais silenciosa. Estava declarada.

E, naquele instante, ela entendeu:

o problema nunca foi a roupa.

Nem o trabalho.

Nem ela.

Era o medo de Diana de perder algo que já estava rachado.

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