O restaurante estava mais silencioso agora. As mesas ao redor começavam a se esvaziar, e a música ambiente parecia distante, como se viesse de muito longe. Guilherme permanecia olhando para Júlia, esperando, respirando com cuidado. Era a primeira vez que, desde que se reencontraram, ele realmente entendia que não estava ali para falar.
Era a vez dela.
Júlia pousou os talheres sobre a mesa com delicadeza. Não havia pressa. Não havia raiva que atropelasse as palavras. Havia algo mais profundo — verdade guardada tempo demais.
Ela respirou, sustentando o olhar dele.
— Eu esperei por você, Guilherme. — sua voz não tremeu, e isso foi ainda mais doloroso. — Não por semanas. Não por meses. Eu esperei… anos. Anos que eu nunca vou recuperar.
Ele baixou o olhar, como se fosse indigno de vê-la enquanto ela o despia do passado.
— Foram quase oito anos — ela continuou. — Oito anos da minha vida esperando que você voltasse. Que você me ligasse. Que batesse na minha porta. Que ao menos… me desse uma explicação.
Guilherme engoliu seco. Mas ela não parou.
— Eu acordava todos os dias com a esperança teimosa de que aquele seria o dia. — ela riu com tristeza. — Parece idiota, né? Mas quando a gente ama… a gente espera. Mesmo quando ninguém mais acredita.
Ela passou os dedos pelo guardanapo, nervosa.
— E enquanto isso, minha vida estava acontecendo. Eu entrei na faculdade de Jornalismo. Me formei. Consegui estágio numa revista pequena. Depois, fui crescendo, crescendo… até me tornar editora-chefe de uma revista que hoje você deve conhecer.
Guilherme ergueu os olhos, surpreso.
Ele sempre soube que ela brilharia.
Sempre.
— Eu via suas entrevistas, seus projetos sendo premiados, suas fotos em eventos na Argentina. — ela disse, pausadamente. — E sabe o que era pior?
Ele esperou.
— Eu estava orgulhosa. Mesmo ferida. Mesmo abandonada. Mesmo sem nenhum direito… eu estava orgulhosa de você.
O ar entre eles pareceu pesar.
— Eu pensava: “Ele conseguiu. Ele está vivendo tudo que sonhou.” — ela desviou os olhos, e um brilho úmido apareceu neles. — Mas ao mesmo tempo, cada vez que eu te via em algum jornal, em alguma matéria, em alguma foto ao lado da Lauren, eu sentia… como se alguém apertasse meu peito de dentro para fora.
Guilherme fechou os olhos.
Ele não tinha ideia.
Nenhuma.
— Eu tive crises de ansiedade. — ela confessou. — Eu passei noites acordada. Eu parei de comer por semanas. Minha mãe tinha medo que eu adoecesse de verdade. Eu não falava de você com ninguém, porque só de ouvir seu nome… eu desmoronava.
Ele sentiu o mundo inteiro ruir dentro dele.
— Júlia…
— Não. — ela o interrompeu, gentilmente. — Você precisa ouvir isso. Se estamos aqui… se estamos falando a verdade… então precisa ser toda ela.
Ela respirou fundo, juntando as palavras com cuidado.
— Eu fiquei presa naquele último dia. Naquele banco da praça. Naquela versão de nós dois que jamais teve um desfecho. Para mim, você não tinha ido embora. Você tinha sido arrancado. Eu… fiquei incompleta.
Silêncio.
Pesado.
Denso.
Irrevogável.
— E então… — ela disse, e sua voz mudou — Marcos apareceu.
Guilherme sentiu um pequeno sobressalto. Mas ele permaneceu em silêncio. Ele sabia que precisava ouvir.
— Ele trabalhava comigo. No início, era só alguém que me perguntava se eu já tinha almoçado, que lembrava meu café do jeito certo, que me acompanhava até em casa quando eu saía tarde demais da redação. — ela sorriu de leve, um sorriso diferente, mais real. — Ele não tentou me consertar. Ele só… ficou.
Aquele “ficou” atravessou Guilherme como uma flecha.
Porque ele sabia ser intenso.
Mas nunca soube ser constante.
— Marcos foi a primeira pessoa que não tentou competir com a minha dor. — ela continuou. — Ele não pediu para eu esquecer você. Não me pressionou. Não me cobrou. Ele apenas existiu… ao meu lado. Paciente. Firme. Presente.
Ela mexeu na aliança fina que usava na mão.
— E aos poucos… eu consegui respirar de novo. Conseguir acordar sem esperar que você voltasse. Eu consegui me olhar no espelho sem perguntar o que eu fiz de errado. Eu consegui ser eu. Não a menina que perdeu o amor da vida… mas a mulher que reconstruiu a própria história.
Guilherme absorvia cada palavra como se fossem lâminas.
E eram.
— Eu não me apaixonei por Marcos como eu me apaixonei por você. — ela disse, honesta, corajosa. — Não queimou. Não arrebatou. Não virou mundo. Mas era… paz. Era cuidado. Era terra firme depois de um naufrágio.
Ela levantou o olhar.
— Ele me devolveu a capacidade de viver.
Guilherme sentiu o ar falhar no próprio peito.
Não havia como argumentar com isso.
Não havia como enfrentar quem chega depois do estrago e ainda assim decide ficar.
— E agora você voltou. — ela disse, num suspiro que era metade alívio e metade tormenta. — Você voltou com verdades, com cicatrizes, com arrependimentos… e com aquilo que eu passei anos tentando enterrar.
Os olhos deles se encontraram.
Intensos.
Velhos conhecidos.
Ainda perigosamente próximos.
— Eu não sei o que fazer com tudo isso, Guilherme. — ela confessou, finalmente vulnerável. — Seria tão mais fácil se eu te odiasse.
Ele tocou o próprio peito, como se algo doesse fisicamente.
— Eu nunca pedi que fosse fácil, Júlia. Só pedi… uma chance de reparar.
Ela sorriu, mas era um sorriso triste.
— Reparar não devolve o que eu perdi. Não devolve os anos. Não devolve a Júlia que acreditava que amor era para sempre.
Ele não disse nada.
Porque qualquer palavra seria pequena demais.
— Eu preciso de tempo. — ela disse novamente. — Tempo para entender o que sinto. Tempo para encaixar o passado no presente. Tempo para olhar para você sem sentir que posso desmoronar.
Guilherme assentiu.
— Eu vou esperar. — ele disse. — Desta vez… eu fico.
E quando eles se levantaram da mesa…
Não havia final feliz.
Não havia decisão.
Não havia promessa.
Mas havia verdade.
E às vezes
a verdade é o primeiro passo
para tudo o que ainda pode existir.