Capítulo 2 – Ela Disse Não

 Pequena Dália parecia uma cidade parada no tempo.

Casas com janelas abertas, portas que rangiam, pessoas que se conheciam pelo nome e um certo charme indecente que incomodava Miguel desde o primeiro instante. Como se aquele lugar simples zombasse da magnitude do homem que acabava de pisar ali com sapatos de couro italiano e uma pasta de contratos que podiam comprar metade do bairro.

Mas ele não estava ali para negociar. Estava ali para vencer.

E vencer significava dobrar Anyellen Lins.

A reunião foi marcada em um salão comunitário anexo à ONG. Um prédio baixo, pintado em cores vibrantes, com janelas largas e uma árvore frondosa tomando conta da entrada, como se quisesse proteger tudo lá dentro do mundo de fora.

Do mundo de Miguel.

— Senhor Fontes .

Anunciou um dos assistentes locais.

— Todos o aguardam.

Ele apenas assentiu com um leve movimento de cabeça. Trajava um terno escuro impecável, gravata ajustada e olhos que já haviam assustado juízes, governadores e empresários. Mas ao cruzar o limiar da porta, algo o fez parar.

Ela estava sentada à frente, cercada por moradores, jovens da ONG e alguns professores.

Anyellen.

Pele morena como café forte. Cabelos longos presos em um coque improvisado, repleto de cachos volumosos, com fios rebeldes escapando como se se recusasse a serem domados, emoldurando um rosto que não pedia permissão para ser lembrado.

Os olhos… Ah, os olhos. Verdes, intensos, absurdamente vivos. Carregavam um brilho insolente, selvagem, como quem já enfrentou o mundo tantas vezes que aprendeu a vencer no olhar. E quando os olhos dela cruzaram com os dele, acenderam dentro de Miguel uma urgência crua, antiga. Um desejo que não pedia licença.

Não era um rosto de princesa delicada. Era o rosto de uma mulher que conhecia a dor e não escondia as cicatrizes. Que dizia “não” com a mesma firmeza com que respirava.

Miguel parou. Um segundo. Só um. Mas foi o bastante para que o tempo se curvasse e o mundo ficasse em silêncio.

Algo o puxava para ela. Como um ímã. Como uma promessa.

E foi ali, naquele instante suspenso, que ele sentiu raiva.

Raiva por não ter controle.

Raiva por ter sido pego de surpresa.

Raiva… por já estar desejando.

Desejando aquela mulher que nem o havia tocado e já queimava sob sua pele.

Ela o viu.

E não piscou.

Não havia admiração. Nem temor. Nem sequer aquela curiosidade disfarçada que tantas mulheres demonstravam ao vê-lo ao vivo, depois de tantos rumores, fotos e manchetes.

Anyellen o olhava como se estivesse olhando para um desafio. Ou pior: como se ele não fosse nada que ela não pudesse enfrentar.

— Senhor Fontes.

Ela começou, antes mesmo que ele se apresentasse , seja bem-vindo. A comunidade agradece sua presença, embora...

Ela inclinou levemente o queixo.

— ...A gente sabia que sua visita tem mais de ameaça do que de gentileza.

A sala ficou em silêncio.

Miguel arqueou uma sobrancelha. Caminhou com elegância até a cadeira reservada e, ao sentar-se, pousou a pasta sobre a mesa com a precisão de quem sabe que tudo que carrega ali pode mudar o rumo de qualquer conversa.

— Eu não faço ameaças, senhorita Lins. Eu negocio. E quando a razão encontra resistência, costumo vencer pela lógica.

Ela cruzou os braços.

— Que bom que veio, então. Assim pode ver com os seus próprios olhos que aqui a lógica é outra. E a resistência... não se vende.

Ele sorriu. Mas era aquele sorriso que não chega aos olhos.

— Toda resistência nasce do medo.

— A minha nasce da memória.

Ela se inclinou para frente.

— Já vi homens com o seu olhar. Com seus sapatos. Com suas promessas. E com a mesma mania de achar que tudo tem um preço.

Miguel manteve a calma.

Mas por dentro... algo se movia.

Aquela mulher mexia com ele de um jeito que não tinha nada de suave. Era um incômodo prazeroso. Uma provocação de pele, mesmo à distância.

E ela sabia.

— Vocês recebem verba da minha empresa .

Ele disse, sem rodeios.

— Transferências diretas por meio do braço social da Fundação Fontes. Só isso já justificaria, no mínimo, uma abertura para conversarmos sobre o uso do terreno.

— O repasse foi feito sem nossa solicitação. E já estamos devolvendo os valores.

Ela jogou sobre a mesa um envelope pardo.

— Aqui estão os comprovantes. A transparência é um princípio nosso.

Miguel pegou o envelope. Abriu. Verificou. Estava tudo ali. Cada centavo devolvido com juros e correção.

— Você abriu mão de um financiamento de seis dígitos.

— Porque eu não aceito dinheiro que vem com coleira.

Silêncio de novo.

Anyellen estava serena. Mas havia algo feroz na forma como mantinha o olhar fixo, firme, como se soubesse que, de alguma maneira, aquilo o desconcertava.

E desconcertava.

Miguel já havia enfrentado protestos, audiências públicas, prefeitos corruptos, ambientalistas radicais. Mas nunca uma mulher como ela. Uma mulher com voz mansa, firmeza no olhar e uma coragem que beirava o desejo de provocá-lo até o limite.

— Seu projeto é bonito, senhorita Lins. Comovente, até. Mas bonito não paga contas. Não ergue muros. E não sustenta uma cidade inteira. Meu hotel pode gerar empregos, revitalizar a área, colocar Pequena Dália no mapa. Vocês, com pincéis e poemas, vão continuar apagados.

— Prefiro viver no escuro do que me vender para uma luz que cega.

Ela devolveu.

— E minha resposta continua sendo a mesma que dei ao seu sócio Gustavo: não.

A palavra ficou ali, no ar, entre eles. E soou como um tapa. Como um convite.

Miguel não respondeu de imediato.

Observou-a.

A forma como seus lábios se curvavam. O pescoço ereto, orgulhoso. As mãos firmes. Ela não tremia. E isso o fazia querer vê-la tremendo.

Mas por ele.

Não pelo medo. Pelo desejo.

E era esse pensamento que o fez respirar fundo antes de se levantar.

— Foi um prazer conhecê-la, senhorita Lins. Voltaremos a nos ver em breve.

— Imagino que sim. O poder tem esse vício de insistir.

Ele caminhou até a porta. Mas antes de sair, virou o rosto lentamente, os olhos cravando os dela uma última vez.

— Só uma curiosidade, Anyellen...

Disse, deixando o nome escapar com um sabor quase indecente.

— Você sempre fala com tanta firmeza com os homens que tentam te dominar?

Ela o olhou por inteiro. Devagar. Com um ar que não se fingia de inocente, nem de submissa.

— Só com os que acham que podem.

A porta se fechou atrás dele.

E Miguel soube, naquele instante, que não sairia dali até fazê-la dizer sim.

Mas não por dinheiro.

Por ele.

A porta se fechou atrás dele.

E Miguel soube, naquele instante, que não sairia dali até fazê-la dizer sim.

Mas não por dinheiro.

Por ele.

E quando saiu o sol queimava alto quando ele pisou na calçada, mas o calor que sentia vinha de dentro.

Anyellen.

A forma como ela disse “não” não era comum. Não carregava rebeldia juvenil, tampouco aquele orgulho forjado de quem tenta parecer forte para esconder o medo. Era um “não” inteiro, limpo, honesto. E isso o deixava... inquieto.

Ele entrou no carro com os punhos cerrados e o maxilar tensionado. Enzo, seu motorista e segurança pessoal, abriu a porta sem dizer uma palavra. O silêncio entre os dois era hábito, mas naquele dia, pesava mais do que o normal.

— Volte ao hotel.

Ordenou Miguel, sem encarar o homem.

— E me traga tudo o que conseguir sobre ela. Desde o nascimento.

Enzo assentiu.

Mas Miguel não esperou. Pegou o celular e abriu o navegador. Buscou por "Anyellen Lins + ONG Luz das Cores". As manchetes eram poucas. Pequenas reportagens locais, fotos de eventos comunitários, prêmios culturais. Nenhum escândalo. Nenhuma polêmica. Apenas rostos sorridentes, pincéis, adolescentes em transformação.

E ela.

Em cada imagem, Anyellen estava ali. Às vezes com as mãos sujas de tinta. Outras com livros no colo. E em todas, com aquele olhar que ele já conhecia. Um olhar que não pedia aprovação. Um olhar que sabia onde estava e, mais ainda, por que estava ali.

Miguel aumentou uma das imagens com os dedos. Anyellen estava de lado, perfil quase grego, boca entreaberta como se risse de algo que alguém dissera fora da câmera. O coque improvisado deixava parte da nuca exposta, e o vestido florido mostrava mais pele do que ele havia reparado pessoalmente. Ombros redondos. Pele dourada. E um traço de beleza real, nua, impura de vaidade, o tipo de beleza que não se encaixa nas revistas, mas que crava raízes em quem a vê de perto.

Seu corpo reagiu antes da mente.

Miguel afastou o celular com raiva contida.

Não era só desejo.

Era desejo de vencer. De conquistar. De vê-la quebrar. Mas ao mesmo tempo... não. Não queria vê-la quebrada. Queria vê-la se rendendo por escolha. Por vontade. Por desejo tanto quanto o dele.

Queria ouvir aquele "sim" como quem ouve uma confissão sendo atendida.

— Você tá diferente.

Disse Enzo, enquanto virava à direita.

— Normalmente, quando alguém diz não pro senhor... já tá arruinado em meia hora.

Miguel desviou os olhos do celular.

— Ela não é um alguém qualquer.

— É por isso que o senhor ficou mudo por dez segundos quando ela falou com aquele tom?

Miguel girou lentamente a cabeça para encarar o motorista. Um aviso silencioso para que se calasse.

Mas Enzo, como sempre, sorria com insolência. Era o único que podia zombar dele e sair vivo e talvez até mais bem pago por isso.

— Ela não me enfrentou. Ela me leu.

Miguel murmurou, mais pra si mesmo.

— E o que ela viu?

— Um homem que não aceita ser negado.

— Mas foi negado mesmo assim.

Miguel fechou os olhos por um segundo, tentando acalmar o fogo que pulsava no centro de seu peito. Não era raiva. Não era frustração.

Era faísca.

De um jogo que estava só começando.

E a primeira jogada de Anyellen havia sido ousada.

Mas Miguel já havia decidido: ele venceria.

Nem que, para isso, tivesse que jogar pelas regras dela.

Nem que tivesse que aprender a falar outra língua: aquela que não se compra. Aquela que se conquista.

E ninguém ensinava melhor isso... do que a mulher que acabara de dizer não olhando em seus olhos.

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