O escritório de Miguel Fontes cheirava a madeira nobre, couro novo e ambição crua.
Do vigésimo sexto andar, ele via a cidade se curvar ao seu poder — prédios menores, carros que pareciam formigas, ruas desenhadas como mapas privados. Era dono de mais do que terras e empresas. Era dono de decisões. De silêncios. De destinos. E, ainda assim, naquela manhã, seu império tremia. — Como assim a compra foi bloqueada? A voz dele cortou o ar como lâmina. Na sala de reuniões, três diretores engoliram em seco. Um deles, o mais experiente, empurrou uma pasta marrom sobre a mesa de vidro. — O cartório indeferiu o pedido de posse, senhor Fontes. O terreno está protegido por um projeto social há mais de oito anos. E a instituição tem imunidade jurídica por ser tombada como espaço de utilidade pública. Miguel não respondeu. Abriu a pasta, analisou documentos, carimbos, assinaturas. Tudo parecia real. Oficial. Legal. — E por que só agora isso me foi comunicado? Silêncio. Todos sabiam a resposta: Gustavo havia garantido que “estava resolvendo”. Gustavo, o sócio de confiança. O mesmo que, naquele instante, suava em silêncio, as mãos escondidas sob o paletó cinza. Ele sempre fora bom em discursos, em seduzir investidores, em transformar problemas em promessas. Mas Miguel não era feito de palavras. Era feito de precisão. E controle. — O projeto Luz das Cores é liderado por uma mulher chamada Anyellen Lins , disse outro diretor, abrindo o notebook. — Ela recusou todas as ofertas. Inclusive as mais generosas. E agora… — Agora está recebendo dinheiro da minha empresa . Miguel o interrompeu, jogando outro dossiê sobre a mesa. — Sem meu aval. Sem contrato. Sem passar pelo jurídico. Silêncio. Miguel girou a cadeira devagar, encarando os homens à sua frente com olhos de aço. Nenhum sustentou o olhar por mais de três segundos. — E eu repito: por que estou sabendo disso só agora? Gustavo respirou fundo. Sentou-se com lentidão, ajustando os punhos da camisa com o velho gesto ensaiado. Sua especialidade: parecer calmo no meio do colapso. — Miguel… eu tentei resolver sozinho. Acreditei que conseguiria negociar com ela. Mas ela é... teimosa. Idealista. Não se impressiona com cifras. — Isso se diz de toda mulher que ainda não teve o preço certo posto sobre a mesa Miguel respondeu com um meio sorriso. Mas por dentro, algo vibrava diferente. Desde sua primeira empresa aos vinte e quatro anos, Miguel aprendera a identificar padrões. Pessoas previsíveis. Negócios com lógica. Números que obedeciam. Mas aquela mulher, aquela ONG, estava fora da equação. E isso o incomodava. — Quero tudo. Agora. Ele se levantou. — Nome completo, registros da ONG, cópia dos repasses. Quero saber quem autorizou as transferências, e se há ligação pessoal entre algum funcionário e a tal diretora. — Ela não é diretora, tecnicamente. Corrigiu o advogado. — É apenas fundadora. O projeto é horizontal. Todos decidem juntos. Miguel ergueu a sobrancelha. — Horizontal? — Sim… é um modelo autogerido. Comunitário. — Que poético. Então, quando eu derrubar o prédio com escavadeiras, todos morrem juntos. Em igualdade. Perfeito. O diretor tossiu, constrangido. — Senhor, há jornalistas atentos à região. Qualquer ação abrupta pode gerar... — Imprensa se compra. Cortou Miguel. — Com doações. Bolsas culturais. Campanhas de inclusão. Já fiz isso antes. Não me preocupo com manchetes. Só com uma coisa: minha vontade. O silêncio que se formou era denso. Mas, dentro dele, algo se agitava. Miguel não sabia o quê, exatamente. Talvez o nome da ONG, “Luz das Cores” , brega demais para estar em seu caminho. Talvez fosse o fato de nunca ter ouvido falar dela. Ou, talvez... fosse o fato de não estar no controle. E isso o enlouquecia. Gustavo se levantou também. Tentou manter a voz firme. — Miguel, você precisa entender. Ela não é qualquer uma. Ela tem carisma. Todos a seguem. As crianças a amam. Os vizinhos a defendem. Ela tem... voz. — Ela tem o meu dinheiro . Miguel corrigiu. — E isso é o que importa. Pegou o celular. Digitou algo curto. Em dois minutos, sua assistente apareceu na porta. — Agende reunião com o jurídico. E prepare minha viagem. Quero ver com meus próprios olhos quem é a mulher que ousa me desafiar. — Para qual cidade, senhor? — Onde essa ONG estiver. — Pequena Dália, interior do estado. Ele riu, sarcástico. — Claro que seria uma cidade com nome de flor. Enquanto os diretores se dispersavam, Gustavo ficou. Queria dizer algo. Talvez alertar. Talvez protegê-la. Mas Miguel o encarou com frieza: — Você já errou demais. Se quiser continuar aqui, traga resultados. Caso contrário... leve sua admiração e sua culpa pra outro lugar. E saiu. No elevador espelhado, sozinho, Miguel olhou para o próprio reflexo. Terno preto. Gravata cinza. Olhos escuros como noite prestes a desabar. Parecia exatamente como sempre fora. Mas por dentro, algo tremia. Algo que nem ele sabia nomear. Miguel Fontes não era feito de intuições. Vivia sob o império dos fatos. Sabia o preço da maioria das coisas e, muitas vezes, o valor. Mas naquela manhã, quando a pasta foi aberta, ele teve certeza: não era apenas o terreno da ONG que fora invadido. Talvez... fosse ele. O nome dela surgia em sua mente feito um sussurro repetido. Anyellen. Lido em silêncio. Escrito nos papéis. Repetido nos relatórios. Comum o bastante para passar despercebido. Mas havia um ruído ali. Algo na sonoridade. Um som que parecia pertencer a alguém que não baixava a cabeça. Anyellen. Como soaria esse nome sussurrado no escuro? Grave? Macio? Desafiador? Miguel imaginou sua boca, mesmo sem ver o rosto. Imaginou olhos que não tremiam diante da autoridade. Voz firme. Pele quente. Presença que não se vestia de marca, mas de verdade. O elevador seguia em silêncio. As portas espelhadas refletiam um homem em controle. Mas Miguel já não se sentia inteiro. Não era luxúria. Ainda. Não era raiva. Apenas. Era algo ancestral: o desejo de possuir aquilo que resiste. Na garagem, o motorista abriu a porta. Miguel entrou sem desviar o olhar do vidro escurecido. A cidade era dele. Mas, agora, sua guerra começaria em outro lugar. Em Pequena Dália. Ele ainda não sabia o que encontraria. Mas sabia o que queria descobrir. Por que uma mulher recusaria tanto dinheiro? Por que resistiria quando tantos à sua volta imploravam por apoio? O que ela protegia com tanta força? Sentia-se provocado. Não por vaidade. Mas por algo mais fundo. Algo que... já o havia tocado. Sem encostar. E esse era o perigo. Porque, quando um império é ameaçado, o imperador não recua. Ele avança. E Miguel estava pronto para isso. Nem que, no caminho, algo nele também fosse derrubado. E talvez… fosse exatamente isso que ele estivesse esperando que acontecesse.