Por dois segundos, ou talvez dez, eu simplesmente encarei Pedro, piscando como se ele tivesse acabado de me pedir para pilotar um avião ou assaltar um banco. Havia muitas coisas que eu imaginava que ele pudesse me propor naquela noite: uma entrevista exclusiva, uma parceria em algum projeto social, sei lá, um podcast sobre música indie brasileira, mas namoro falso? Isso definitivamente não estava entre as opções.
— É o quê? — Perguntei incrédula. Soltei uma risada nervosa, meio automática, esperando que ele dissesse "brincadeira" logo em seguida. Mas ele apenas sustentou o olhar, calmo. Sério. Como se não tivesse acabado de me propor um roteiro digno de comédia romântica de streaming. — Me desculpa… — limpei a garganta, colocando a taça de vinho sobre a mesa com cuidado exagerado. — Você acabou de me pedir pra fingir ser sua namorada? — É. — Ele confirmou com uma simplicidade absurda. — Só por um tempo. Até a poeira baixar. Inclinei o corpo pra frente, encarando-o como se estivesse tentando ver alguma falha na Matrix. — Você tem noção do que tá dizendo? Isso não é um favor qualquer, tipo “me ajuda a escolher uma gravata” ou “pode segurar meu cachorro por cinco minutos”. É um pedido digno de novela mexicana. Ele sorriu. Aquele maldito sorriso tranquilo, quase encantador, que provavelmente tinha feito metade da internet suspirar em algum momento. — Eu sei que parece loucura. Mas não estou te pedindo isso por impulso. Pensei bastante antes de te chamar pra esse jantar. Revirei os olhos. — Uau. Sinto-me honrada. Me chamou pra um restaurante chique pra me oferecer um papel de mentira. Que romântico. Pedro entrelaçou os dedos sobre a mesa, o olhar ainda calmo, mas agora com um quê de vulnerabilidade. — Minha imagem tá um desastre, Isadora. A imprensa me chama de mulherengo, irresponsável, egoísta… e o pior é que eu não consigo mais controlar a narrativa. Cada passo meu vira combustível pra reforçar isso. O contrato com a série nova tá por um fio. O estúdio quer alguém “mais centrado”, mais comprometido. Querem que eu seja… confiável. E, bem, estar em um relacionamento ajuda nesse tipo de reconstrução. Cruzei os braços, sem desviar o olhar. — E a sua solução brilhante foi contratar uma namorada de mentira? — Uma namorada de verdade pareceu um pouco mais difícil — ele rebateu com humor. — A maioria das pessoas que se aproximam de mim hoje quer alguma coisa. Um favor, uma chance, visibilidade. Você foi a única pessoa que sentou na minha frente e não tentou me agradar. E mais: você me confrontou, me colocou contra a parede com palavras honestas. Isso… me marcou. Por um momento, me vi desarmada. Não pelo elogio em si, mas pelo jeito como ele disse. Sem floreios. Sem tentativa de manipulação. Só… verdade. — Pedro — respirei fundo, tentando manter o foco. — Você sabe que isso é completamente maluco, né? — Sei. Mas também sei que, se tem alguém capaz de me ajudar a parecer minimamente humano diante das câmeras, é você. Ri, balançando a cabeça, ainda sem acreditar no rumo da conversa. — Eu sou jornalista, não atriz. — Melhor ainda. O público confia em você. Eles gostam da sua imagem. Confiam na sua palavra. Isso vai funcionar. Olhei ao redor, como se esperasse que alguma mesa próxima estivesse prestes a rir da nossa conversa. Mas o restaurante continuava em sua bolha elegante, alheio à minha crise pessoal. — E se der errado? Se descobrirem? — Vai dar certo. Porque eu confio em você. As palavras ficaram suspensas entre nós. Senti um arrepio esquisito na espinha, o tipo que avisa que sua vida tá prestes a dar uma guinada sem retorno. Levei a taça aos lábios outra vez, apenas para ganhar tempo. Meus pensamentos estavam em looping. Eu precisava sair dali, respirar, repensar. Ou me trancar no apartamento e conversar com o Bento até ele responder. Mas, por algum motivo, eu não disse “não”. Ainda. Eu ainda estava presa na mistura surreal entre incredulidade e um leve toque de desespero. O tipo de momento que, se estivesse assistindo em um filme, eu pausaria só pra absorver. Mas ali, ao vivo e sem roteiro, a realidade era desconcertante demais. Pedro me observava com aquela calma irritante, como se estivesse me dando tempo. Ou talvez torcendo para que eu não saísse correndo pela porta do restaurante. — Você tá realmente achando que eu aceitaria me envolver nesse teatro? — perguntei, recostando na cadeira e cruzando os braços. — Só porque você tem um problema de imagem pública? — Não. — Ele inclinou levemente a cabeça, o tom ainda tranquilo. — Eu acho que você aceitaria se fosse um bom negócio. Eu o encarei, sem disfarçar o ceticismo. Aquilo estava começando a soar como proposta de filme B com reviravolta contratual. — Um bom negócio? Isso aqui virou uma sala de reuniões e eu não percebi? — Bom — ele deu um leve sorriso — se formos pensar em termos práticos… talvez sim. Meus olhos estreitaram. — Pode parar de enrolar e falar logo. Que tipo de negócio é esse, Pedro? Ele respirou fundo, apoiando os antebraços sobre a mesa. — Eu tô falando de um acordo formal. Contrato mesmo. Tudo registrado. Você seria paga pelo tempo em que estivermos juntos publicamente. Por eventos, aparições, redes sociais... tudo. Um valor fixo mensal. E, claro, um bônus ao final, se tudo correr bem. Pisquei. Uma vez. Duas. — Você quer… me pagar pra fingir ser sua namorada? — Quero te compensar por aceitar entrar nessa loucura. Eu não esperava que você aceitasse por boa vontade ou caridade. Mas se isso puder te ajudar de alguma forma… Ri. Não de diversão. De puro espanto. — Isso é… completamente insano. Ele não se abalou. — Talvez. Mas é também profissional. Você sairá com sua reputação intacta, talvez até mais visibilidade… e com um bom dinheiro no bolso. Pode investir na sua carreira, viajar, reformar seu apartamento, sei lá. Você escolhe. Fiquei quieta por alguns segundos. O silêncio pareceu pesar sobre a mesa. A verdade? Uma parte de mim estava começando a processar aquilo com menos negação. E essa parte, perigosamente, começou a considerar. Porque a realidade era dura: minha conta bancária não era das mais saudáveis, minha carreira andava estagnada e o aluguel tinha subido absurdamente. Trabalhar com jornalismo era gratificante, sim. Mas não lucrativo. Eu não era nenhuma âncora do telejornal das 21h. E agora, diante de mim, estava um cara que parecia saído diretamente de um outdoor da Avenida Paulista, me oferecendo uma chance real de colocar minha vida nos trilhos, mesmo que por um caminho torto e absurdo. Suspirei, olhando para a toalha de linho branco como se ali estivesse alguma resposta. — Quanto estamos falando? Ele sorriu, como se soubesse que minha pergunta era o primeiro passo. — Podemos discutir os detalhes depois. Mas será o suficiente para que, quando isso tudo terminar, você possa escolher o que quiser fazer da vida. Sem aperto. Sem dívida. E com liberdade. A palavra “liberdade” ficou martelando na minha cabeça. Ainda assim, balancei a cabeça devagar, tentando colocar freio no turbilhão. — Isso tudo é tão… estranho. Tão errado em tantos níveis. — Talvez. — ele respondeu com leveza. — Mas também pode ser a melhor loucura da sua vida. Dei um sorriso torto. — Ou a mais idiota. Pedro ergueu a taça dele num brinde silencioso. — Às vezes, as duas coisas andam juntas. (...) — Você vai pensar com calma, sem surtar — murmurei pra mim mesma, segurando firme a alça da bolsa enquanto esperava o elevador chegar. A noite lá fora estava tranquila, o ar morno contrastando com o turbilhão que era minha cabeça. A última hora parecia um devaneio, tipo aqueles sonhos que você acorda e pensa “Ufa, ainda bem que não é verdade”. Exceto que dessa vez era. Pedro Dantas, o ator que provavelmente tem mais fotos em capa de revista do que palavras no vocabulário, me propôs um namoro de mentira. Pago. Com contrato, bônus e até cronograma, aparentemente. Porque, claro, na cabeça dele, é super normal oferecer dinheiro para alguém fingir que te ama. Assim que entrei no prédio, dei de cara com Clara no corredor. Ela estava com uma sacola de pizza e uma garrafa de vinho, em versão “sexta à noite solitária com carboidrato”. — Oi, sumida! — ela disse, empolgada. — Foi jantar fora, é? Tá chique. — Algo assim — respondi, forçando um sorriso e apontando com a cabeça para minha porta. — Preciso conversar com um ser mais racional. Tipo o Bento. Ela riu e eu entrei no apartamento antes que ela insistisse para eu ficar ali com ela. Não hoje. Hoje, eu precisava de silêncio, da minha cama e do meu gato — nessa ordem. Bento estava esparramado no sofá, dono e soberano do território. — Voltei, majestade — joguei a bolsa sobre a poltrona e chutei os sapatos longe. — Você não vai acreditar no nível da insanidade que minha vida atingiu hoje. Ele bocejou. Zero interessado. — Fui jantar com o Pedro Dantas — comecei, fingindo uma entonação de novela mexicana. — Sim, o Pedro Dantas. E ele me pediu em namoro. De mentira. Por contrato. Silêncio. Mais um bocejo. Depois, Bento virou de lado. — Achei que você fosse ficar mais surpreso — resmunguei, me jogando no sofá ao lado dele. — Ele disse que me pagaria. Tipo, bem. O suficiente pra eu parar de chorar toda vez que chega a fatura do cartão ou o aluguel. E sabe o que é pior? Eu… eu tô considerando. Fiquei olhando pro teto. Às vezes, o forro do apartamento parecia mais sensato do que muita gente que conheci. — É só fingimento, Dora. Você não precisa gostar dele. Só sorrir, tirar fotos, acompanhar nos eventos, parecer apaixonada. Nada demais. Super simples — ironizei, falando comigo mesma. — Só uma mentira elaborada diante de todo o país. O que pode dar errado? Bento ronronou baixinho. Talvez ele estivesse me julgando. — Eu sei. Parece loucura. É loucura. Mas e se for uma oportunidade? Talvez eu esteja sendo covarde por não aceitar. Fechei os olhos e respirei fundo. — Claro que também pode ser o pior erro da minha vida. Mas, sinceramente? Já fiz coisa mais idiota por muito menos. O celular vibrou sobre a mesa. Era uma mensagem do Pedro. “Sem pressa. Só quero que pense com calma. Estou à disposição pra conversar sempre que quiser. Boa noite, Isadora.” Suspirei outra vez, agora mais longa. Aquilo não era só uma proposta. Era uma virada potencial de vida. E eu não fazia ideia de qual direção tomar. — O que você acha, Bento? A gente aceita a loucura ou continua contando moedas pra comprar ração? Ele levantou, caminhou lentamente até o meu colo e se enroscou ali, como se dissesse “vai com calma, humana”. Talvez fosse o conselho mais sábio da noite. Talvez, só talvez… fosse hora de considerar a loucura.