Capítulo 6

Subi as escadas com as pernas amortecidas. Cada degrau me pareceu mais alto que o anterior. Os retratos dos antepassados enfileirados pelas paredes me espiavam: homens solenes, mulheres de queixo baixo, bocas invisíveis. Gente que aprendeu a viver com o nó.

Passei pela porta de Ruth. Um fiapo de luz vazava pela fechadura. Toquei de leve, duas vezes.

— Ru? — sussurrei.

Nada. E então um estalar tímido no piso.

— Estou dormindo — veio a voz mais baixinha do mundo.

Sorri sem conseguir evitar.

— Então durma, pacotinho. Amanhã cedo eu… — a voz falhou — eu te acordo.

Silêncio. Depois, um “tá” tão pequeno que quase virou vento. A coragem de Ruth — silenciosa, escondida, resistente — me deu um pedaço de ar.

O meu quarto estava como eu deixei, só mais limpo, arrumado por mãos que não conhecem minhas bagunças: cortinas fechadas, a colcha dobrada na medida militar que minha mãe exige, a penteadeira polida refletindo um rosto que eu reconhecia e não reconhecia — os mesmos olhos escuros daquela foto antiga, porém sem o brilho, com a guerra.

Fechei a porta. Encostei a testa na madeira por um segundo, sentindo o cheiro da cera. Deixei a mala no chão e sentei na beira da cama. A náusea veio e foi como maré. Quando a onda baixa, o corpo finge que nada aconteceu; mas o sal fica.

“Você será colocada em seu lugar”, repetiu Daniel dentro da minha cabeça. Que lugar? O de mercadoria? O de esposa sem voz? O de mãe de herdeiros com sobrenome que eu não escolhi? Apertei os dedos contra as têmporas, tentando impedir que a casa rodasse. Aprendi alguns truques com o tempo: contar objetos no quarto, procurar ângulos fixos, respirar em quatro tempos — entra, segura, sai, segura. Quase sempre funciona. Quase.

Deitei de costas e fiquei olhando o teto. No silêncio, a mansão estala como se respirasse. Eu conheço cada ruído: o da água nos canos do banheiro principal, o das frestas das janelas quando o vento muda, o da madeira antiga do armário do corredor. O único som que eu não conhecia era o do próprio coração batendo tão alto.

Pensei em papai. Não o vi. Não me deixaram ver. Ele estaria dormindo? Estaria consciente? Ou já só existia como desculpa para meu retorno? Daniel sempre soube usar verdades pela metade como se fossem certezas inteiras. Papai gostava de mandar cartas. Bilhetes curtos. “Orgulho.” “Estude.” “Seja maior que as paredes.” Eu guardo todos numa caixa que não trouxe. Erro meu.

Pensei em Manuel. Será que ele foi sumariamente dispensado? Aqui, as pessoas são úteis até o dia anterior ao substituto. Lealdade é rua de mão única: espera-se do outro, não se devolve.

Pensei nas Cinco Famílias. O que a cidade não sabe é que não existem fronteiras para ossos quebrados. Há filhos de juízes que se casam com filhas de banqueiros, e por trás do champanhe, contratos de sangue. Bonanno, no topo. Sorrentino, Fabbri, Mancini e… nós, Lucchese, numa borda conveniente: próximos o suficiente para sujar as mãos, distantes o suficiente para receberem a culpa.

E então pensei nele. Luciano. A lembrança que tenho é a de alguém que não precisa levantar a voz para que a sala obedeça. Depois, o incidente — palavra dita com cuidado, como se o som pudesse acioná-lo. Dizem que foi traição. Outros sussurram que foi castigo. Alguns, que ele próprio executou uma sentença que ninguém teve coragem de assinar. O resultado: reclusão. A casa dele virou fortaleza, o mundo, um corredor estreito. E no centro desse corredor, agora, eu.

— Por que eu? — perguntei ao teto.

A resposta não veio. Mas veio um pensamento como raio: a foto. A mulher de olhos escuros e sorriso quente. Eu a vi uma vez, criança, e aquela foi a única vez que senti que havia amor nessa história toda. Quem era ela? Onde ela cabe no mapa que me empurra para o altar de um Bonanno? Se papai guardava aquela foto como quem protege segredo, talvez o segredo seja a chave. Talvez a escolha de Luciano tenha menos a ver com minha linhagem e mais com aquilo que tentaram esconder em nossas paredes.

Levantei. O corpo ainda tremia um pouco, mas fui até a penteadeira. Abri a gaveta do meio: vazia, como sempre. A da direita: escovas, elásticos, um batom que nunca usei. A da esquerda… um envelope fino, bege, sem nome. Não estava ali antes. Toquei com a ponta dos dedos e o coração pulou como se fosse fugir. Abri. Dentro, uma folha dobrada e uma flor seca — jasmim. O cheiro mínimo estalou uma memória: uma noite de verão, eu, Ruli e Ruth correndo pelo jardim de trás, papai rindo como quem havia esquecido que o mundo exige tudo o tempo todo.

Abri a folha. Caligrafia conhecida: a dele. “Seja maior que as paredes.” A mesma frase, outra letra; mais trêmula. Abaixo, uma data recente. O ar ficou pequeno. Ele está aqui. Ele sabe. Ele me vê.

Sentei de novo. Cruzei os braços no próprio corpo como se pudesse me embrulhar num afeto que não existe nesta casa. Senti a garganta latejar onde os dedos de Daniel deixaram sua assinatura de ódio. Eu poderia descer correndo e gritar para o mundo que não sou camponesa, que não sou moeda, que não serei a esposa silenciosa de um homem que mal conheço. Mas o mundo aqui não tem janelas. Tem olhos. E todos pertencem aos mesmos donos.

Fechei os olhos. Respirei em quatro tempos. Vi Ruth com seus onze anos e um olhar que descobre brechas; vi Ruli correndo, o cabelo atrás como bandeira; vi a mulher da foto, olhos escuros e sorriso quente; vi papai escrevendo “Seja maior que as paredes”; vi Daniel na escada, o rosto duro de quem confunde poder com vitória; vi minha mãe, o robe creme flutuando no corredor, e nas mãos dela não havia carinho, havia chaves.

Amanhã. A palavra tomou forma no quarto como uma vela acesa. Amanhã serei apresentada ao meu destino com um vestido substituindo algemas. Amanhã direi “sim” sem que me perguntem “quer?”. Amanhã olharei nos olhos de Luciano Bonanno e, talvez, entenda por que fui arrancada de mim mesma para estar diante dele.

Talvez eu descubra que eu não fui escolhida — fui calculada.

Virei de lado, abracei o travesseiro. O sono veio aos pedaços, como jornal rasgado. No último rasgo, a imagem que ficou foi a da flor de jasmim, pálida e persistente, guardando um perfume quase invisível que, mesmo esmagado pelo tempo, insiste em existir. Como eu.

Lá fora, o vento arranhava a janela. A mansão rangeu de novo, satisfeita por me ter trazido de volta ao ventre. Eu quis prometer a mim mesma que não seria domada. Quis prometer que não daria a Daniel o espetáculo que ele espera, nem à minha mãe a obediência que ela exige, nem a Luciano o silêncio que o mundo dele pede.

Promessas feitas de madrugada são fósforos na chuva. Ainda assim, acendi as minhas.

— Eu volto por mim — sussurrei, para ninguém. — E levo Ruth comigo.

A casa, claro, não respondeu. Mas senti — em algum lugar que não sei nomear — que uma das paredes respirou mais curto. Talvez eu tenha imaginado. Talvez não. Nesta família, delírio e estratégia andam de mãos dadas e se cumprimentam.

Adormeci agarrada às minhas próprias costelas. Se amanhã eu for mesmo um sacrífico, que pelo menos eu chegue ao altar inteira o suficiente para lembrar quem sou. Se eu tiver de me tornar esposa de um Bonanno, que seja sem esquecer a menina que caminhou seis quilômetros na chuva e aprendeu que perfume caro também pode feder. Se a Sociedade exige meu pescoço, eu ofereço o que ela não sabe engolir: uma cabeça que pensa.

E se Luciano Bonanno realmente me escolher por um motivo enterrado junto àquela foto, então que ele me olhe e veja: não sou camponesa, sou terremoto contido. Paredes racham.

A madrugada esvaziou a casa e, por alguns segundos, tive a impressão de ouvir passos leves no corredor. Levantei em silêncio, abri a porta só o suficiente para ver um vulto miúdo de meias coloridas: Ruth, espiando. Nossos olhos se acharam na penumbra. Ela ergueu a mão e desenhou no ar um coração desajeitado. Eu desenhei outro de volta. Em silêncio. Em segredo. Em resistência.

Fechei devagar. Voltei para a cama. E antes que o sono me tomasse por inteiro, outra pergunta me cutucou como agulha: e se a mulher da foto não fosse apenas um capítulo apagado? E se ela fosse a origem da rachadura que ninguém quer que eu veja?

O jasmim no envelope parecia responder com seu quase perfume: procure.

Eu vou.

Amanhã.

E que me perdoem as paredes.

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