Fomos direto para a casa da minha família. Não gosto de chamá-la de casa; “mansion” cai melhor — soa arrogante como quem a ergueu. Portões altos, arabescos dourados, colunas que imitam templos romanos. Luxo demais grita vazio. A única fagulha que me fazia suportar a volta era Ruth, minha irmã caçula. Onze anos. A idade que eu tinha quando tudo mudou e as sombras dos Bonanno, antes sussurro, viraram presença. Desde então, cada degrau daquele mármore brilhoso me lembra que felicidade, ali, é peça de decoração: bonita, cara e inútil.
Na Sociedade, tudo funciona como um sistema de castas. Quem manda, existe. Quem obedece, sobrevive. Os Lucchese estão nos degraus inferiores — não tão baixos a ponto de serem descartáveis, mas certamente baixos o suficiente para dobrar a espinha e calar a própria voz. O preço de se manter vivo? Nossas filhas. Sempre nossas filhas. Moedas de troca embrulhadas em organza. Ruli, minha outra irmã, recusou o embrulho. Fugiu. Foi caçada pelos olhares, pelos cochichos, pela vergonha que grudou no nosso sobrenome. Ninguém queria mais uma Lucchese — não para apresentar em público, não para deitar no lençol. Até hoje. Luciano Bonanno me escolheu. Uma “honra” que veio com uma sentença: “Você foi escolhida, Rosália.” E escolheram o quê, exatamente? Meu corpo? Minha liberdade? Meu destino? Antes da minha mãe, houve outra mulher na vida do meu pai. Eu não sei o nome dela; nunca soube. O silêncio dele sobre aquela história sempre me pareceu um buraco no assoalho: você anda fingindo que nada existe até cair. Descobri esse buraco numa manhã chuvosa, atrasada para a escola. Abri a carteira do papai para pegar dinheiro e uma foto minúscula escorregou por entre as notas. Era uma mulher de olhos escuros, vivos, um sorriso que aquecia. Vi o meu irmão naquelas íris: mesma cor, outra luz. Papai nunca carregou foto dos próprios filhos, mas escondia aquela — guardada, protegida, eterna. Eu estava tão paralisada que perdi o ônibus. A sentença veio em saltos: minha mãe, robe de seda, gritos, a ordem para eu caminhar seis quilômetros debaixo de chuva. Foi quando aprendi que a dor também tem cheiro: perfume caro e crueldade. O portão da mansão rangeu como sempre, e eu quase pude jurar que ouvi a casa rir. Um retângulo de luz se apagou no segundo andar: o quarto de Ruth. Ela deve ter corrido para a cama quando ouviu o ronco do motor. Criança esperta aprende cedo a medir passos e silêncios. — Lar, doce lar — Daniel comentou, desligando o carro. O tom era o mesmo de quem pisa numa formiga. — Por que não chamou o Manuel? — perguntei. — Ele sempre levou e trouxe papai. Ele conhece as curvas da nossa rua melhor que qualquer um. — Vou contratar meu próprio motorista. — Daniel estalou a língua, entediado. — Não preciso viver nas sombras do velho. — O Manuel é leal. Trabalhou por anos. Você o demitiu? — Por que isso te importa, Rosália? — Ele virou o rosto devagar, cortante. — Desde quando você defende empregados? Guarde sua energia. Amanhã é um grande dia. A frase caiu como gelo. Grande para quem? Peguei minha mala no banco de trás — poucas roupas, dois livros insistentes, anotações da faculdade veladas como contrabando. Parte de mim queria acreditar que papai não estava tão mal e que tudo não passava de um teatro de Daniel. Eu o conheço: ele adora palcos. Mas a fala “você foi escolhida” repetia na cabeça como badalo de sino. Faculdade? Sonhos? Aquilo ficou do lado de fora do portão. A noite envolvia o jardim com vento frio. O perfume de baunilha e canela das velas da minha mãe impregnava o ar. Ela compra as velas mais caras, como se preço garantisse aconchego. Para mim, aquele cheiro é gatilho. Enjoo. Vertigem. Memória. Entrei. O piso brilhava demais; o lustre refletia luz como uma faca. O corpo me deu sinais: pernas bambas, estômago borbulhando, a vista cercada por uma névoa fina. — Aí está a grande Rosália — Daniel ironizou. — Liberdade estraga as pessoas. Voltou e já está passando mal? Puxei o ar, tateando a parede com a palma da mão até sentir o gesso das molduras. — É ansiedade. — Minha voz saiu mais baixa do que quis. — Distúrbio vestibular, Daniel. Eu te expliquei. Estresse piora. Às vezes a sala gira, às vezes o corpo esquece que está em pé. E o enjoo… — Drama. — Ele me agarrou pelo antebraço. — Sobe. — Está me machucando. — Cresça. O puxão me fez tropeçar no tapete persa. Mordi o lábio para engolir o gemido. Ele adoraria ouvi-lo alto, fazer do meu som um troféu. Com Daniel, dor vira moeda. — Quase cavalheiresco, se você não estivesse deixando um roxo no meu braço — falei, tentando manter a língua afiada como única arma. — Ah, esqueci: cavaleiros são ficção por aqui. Os olhos dele ficaram escuros como poço. É estranho como certas pessoas só enxergam o próprio reflexo quando ferem. Eu sempre fui isso para Daniel: espelho torto. A lembrança predileta que ele guarda é a de quando papai me mandou embora, disse que eu precisava “ficar segura”. Foi a única briga que vi entre os dois. Desde então, Daniel me odeia como quem observa uma ferida que não fecha. — Foda-se, Rosália. — Ele me empurrou. Tropecei no aparador; o vaso de cristal balançou, não caiu. A casa parecia prender o fôlego. Ele respirou fundo, como quem calcula. Não era piedade; era estratégia. Marcas chamam perguntas. E o homem que “me escolheu” talvez não gostasse de encontrar a mercadoria amassada. Luciano Bonanno. O nome dele passou por mim como um trem silencioso. Eu o vi uma vez, de longe, num evento da Sociedade: terno escuro, postura de quem carrega o próprio destino no bolso interno do paletó. Havia nele uma beleza incômoda, afiada. Depois, o incidente. E então o recluso. Um fantasma vivo em sua própria propriedade. As Cinco Famílias. Em reuniões, chamam-se “patriarcados”. Nos corredores, “as mãos no pescoço da cidade”. Os Bonanno são cabeça e punho. Decidem quem sobe, quem cai, quem respira. O resto de nós aprende a não fazer perguntas. Mas a pergunta escorregou: — Por que ele me escolheria? Daniel parou. O canto da boca ergueu, mas não era sorriso; era suspense. — Traduzindo: por que um Filho das Sombras tomaria por esposa uma camponesa? — Ele se aproximou, prazer doentio na voz. — Talvez porque camponesas sabem obedecer. — Se eu sou camponesa, o que isso faz de você? — devolvi, firme, mesmo com a vertigem mordendo a nuca. Não deu tempo de afastar. A mão dele fechou na minha garganta. A parede gelada nas minhas costas, o hálito dele quente e ácido no meu rosto. Eu levantei os braços por reflexo, cravei as unhas no antebraço dele. Vi o prazer nos olhos: ele gosta de me ver lutar. — Cuidado com a língua, vadia — sibilou. — Você não sabe o que te espera amanhã. Tentei falar, mas a voz virou arranhão. O corpo começou a buscar ar com desespero. Foi quando uma terceira voz cortou a sala. — Solte-a. Minha mãe, na escada. Robe de seda creme, cabelo impecável mesmo no meio da madrugada. Ela não parecia apressada. Parecia entediada — como quem interrompe uma ópera ruim. Daniel não obedece a ninguém. Exceto quando teme perder algo. A mão afrouxou um pouco, suficiente para o ar voltar a entrar nos meus pulmões. — Não a marque, Daniel — ela disse, descendo dois degraus sem pressa. — Ela não é sua. E você sabe do que eu sou capaz. Ela. Capaz. As palavras martelaram. Minha mãe gosta de ser enigma; adora que a temam. Nessa família, amor é lenda, respeito é moeda, medo é idioma. Daniel a encarou por um segundo longo demais — e eu vi: havia medo. Não dela, talvez; do que ela representa. Dos telefonemas que ela faz sem levantar a voz. Ele se inclinou perto do meu ouvido, a mão ainda firme, mas não mortal. — Você acha que pode me irritar e sair ilesa? — murmurou. — Amanhã você aprende o seu lugar. Vou ficar na primeira fila. Soltou. Dois passos para trás. O olhar cravou em mim como prego. Subiu as escadas sem encostar nela, como se a seda do robe pudesse queimar. Fiquei onde estava, a mão na garganta, sentindo a pele latejar em círculos. Minha mãe cruzou os braços devagar. Bela. Estátua. Fria. — Dois minutos de volta e já causa problemas — ela disse. A voz dela sempre foi um gelo que não derrete nem no verão. — Também é bom te ver, mãe. — Peguei a mala. — Fico feliz que ainda saiba descer escadas. Ela arqueou a sobrancelha, desaprovando a insolência que sempre odiou em mim. E, ainda assim, algo se moveu no fundo dos olhos. Não era afeto. Era cálculo. — Vista algo apropriado amanhã — disse, virando as costas. — Não envergonhe a família.