Chego em casa e tiro logo a gravata. Estou cansado como nunca. Hoje foi o dia mais exaustivo de todos: fui a um funeral, propus um contrato de casamento a uma moça que acabara de perder o pai e, como era de se esperar, fui rejeitado.
Horas depois, exatamente como eu já imaginava, ela me ligou para dizer que aceitava o contrato.
Caminho até a cozinha e pego um copo de água gelada na geladeira. Bebo sem pressa, o gosto frio descendo pela garganta, e sigo para o quarto a fim de tomar um banho antes de dormir.
Minha casa fica em um dos condomínios mais caros de São Paulo. É composta por uma sala enorme com tudo do mais moderno, quatro quartos — cada um com banheiro próprio —, uma cozinha equipada com os melhores eletrodomésticos, além da piscina nos fundos, área de lazer, escritório e a garagem onde guardo meus carros.
Já no quarto, vou direto ao banheiro. Tiro a roupa e a coloco no cesto, que Dona Maria recolherá pela manhã. Entro no chuveiro e sinto a água morna escorrer pelo corpo. Pego o sabonete e o passo sobre a pele e as minhas tatuagens. Algumas têm significados, outras não. Tento afastar as lembranças, mas não adianta. Saio debaixo da água antes que o passado decida me dominar.
Enrolo uma toalha na cintura, vou até o closet e pego uma cueca boxer. Visto-a e deito. Prefiro dormir apenas de boxer, ou no máximo com uma calça de moletom. É mais confortável.
Assim que minha cabeça toca o travesseiro, os acontecimentos do dia retornam em ordem cruel:
Aurora me ligando.
A irmã dela desmaiando.
A notícia dura: poucos meses de vida, se não encontrar um transplante a tempo.
Solto um suspiro e entrelaço os braços atrás da cabeça. Não é fácil perder um irmão. Sei disso melhor do que ninguém. No fundo, espero que ela consiga salvar a irmã. Que tenha a chance que eu não tive.
Empurro as memórias sobre o meu irmão para trás. Não adianta revisitar o que não pode ser mudado.
Ainda há muito a pensar sobre o amanhã.
No hospital, Ricardo me avisou que recebemos o convite para o baile de gala — evento anual do setor financeiro. Ele me lembrou de levar uma acompanhante. Normalmente não vou sozinho, e nem ele. Mas, desta vez, deixou claro: agora tenho uma esposa, e é melhor apresentá-la.
Amanhã mesmo vou resolver isso. Mandarei o motorista buscá-la e levá-la a um lugar adequado.
Ah, sim. Quase me esqueço: hoje também fui ameaçado de morte pela melhor amiga da minha “esposa”.
Ela disse que me mataria se Aurora sofresse durante esse um ano. A coisa mais engraçada que ouvi em muito tempo.
Mas devo admitir: a garota tem coragem. Uma coragem que muitos homens não tiveram. Ela me encarou. Os que ousaram fazer isso antes… não repetiram o erro.
Para tranquilidade dela, não tenho nenhum interesse em ferir Aurora. Quando tudo terminar, vou devolvê-la inteira.
Não que a amiga dela estivesse errada: Aurora Lemos — agora Aurora Vasconcellos — é, sem dúvida, a mulher mais linda que já vi. Quando toquei seu braço hoje, senti algo estranho. Algo que nunca senti ao encostar em nenhuma outra mulher. Nem mesmo em…
Não. Chega de passado.
Amanhã será um dia cansativo. Preciso estar disposto.
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Acordei cedo, como de costume. O despertador tocou às seis em ponto, mas eu já estava desperto antes dele. Levantei-me, fui direto ao banheiro, fiz minha higiene e tomei um banho rápido. Vesti um terno preto para o expediente da manhã. O café já me esperava na mesa — Dona Maria sempre foi atenciosa com isso, mesmo sabendo que eu quase nunca paro para saborear como deveria. Bebi de um gole só, ajustei o relógio no pulso e segui para a empresa.
Meu motorista me levou, como sempre. Assim que chegamos, pedi que ele me acompanhasse até a minha sala.
— Pedro — chamei, e ele se endireitou na cadeira. — Preciso que faça algo.
— Sim, senhor. Às suas ordens.
— Vai buscar a Aurora e levá-la para o hotel. A Beatriz vai encontrá-la lá e a ajudará a se preparar para a noite.
— Sim, senhor. — Levantou-se e saiu sem questionar.
Minutos depois, Ricardo entrou na minha sala, com aquele ar entusiasmado que sempre me irritava logo cedo.
— Bom dia, chefe. Espero que a sua noite tenha sido boa com a sua esposa, porque a minha... pode acreditar, foi com uma loira de deixar qualquer um maluco. Uma fera na cama.
Ele falava demais.
— Que bom para você. E sim, a minha noite foi ótima. — Não foi a melhor, mas também não a pior. — E não, não dormi com a minha esposa. Se você se lembra, é um casamento de fachada.
Ricardo suspirou e jogou-se na cadeira onde Pedro estava minutos atrás.
— Eu lembro. Mas isso não impede que você aproveite o tempo com ela.
— Não. Ela propôs que, se um de nós quebrar qualquer regra do contrato, teremos de pagar uma quantia em dinheiro. E eu não estou disposto a perder dinheiro.
— Como se fosse fazer falta pra você...
Eu sabia que não faria, mas contratos são contratos. Uma cláusula quebrada pode destruir tudo.
— Chega de conversa. Temos que nos apressar, temos compromissos.
— Você é muito chato, cara. Assim dá vontade de arrumar outro amigo. — Ele se levantou, rindo. — Ah, e apresenta logo sua esposa oficialmente. Vou avisar a ela que você precisa de cuidados. Está cheio de tensão aí, precisa se aliviar.
Não respondi. Apenas puxei a gaveta e apontei a arma para ele. Ricardo saiu correndo, gargalhando.
Idiota. Mas, em parte, ele tinha razão: eu estava estressado. Mais do que deveria.
Deixei as minhas necessidades de lado e voltei ao trabalho. O dia foi intenso — reuniões, contratos, pressão dos sócios. Mas algo me tirava o foco: Aurora. Uma mulher que mal entrou na minha vida já ocupava espaço demais nos meus pensamentos. Eu não admitiria em voz alta, mas pensava nela mais do que deveria.
Isso precisava parar. Talvez Ricardo tivesse razão.
Quando o expediente terminou, decidi ir para casa me arrumar para a noite. Festas são chatas, mas inevitáveis. E esta em especial era importante: italianos estariam presentes, e oportunidades como essa não se desperdiçam.
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Mais tarde...
Cheguei em casa e subi direto para o quarto. No banho, deixei a água morna cair sobre meu corpo, tentando relaxar o suficiente para encarar o evento. Escolhi um smoking preto, camisa branca impecável, gravata ajustada. Sapatos lustrados, relógio de ouro no pulso. Olhei-me no espelho: postura firme, expressão fria. O homem que todos esperavam ver.
Desci as escadas, entrei no carro e pedi ao motorista que seguisse para o hotel.
Aurora me aguardava lá. Assim que ela apareceu, vesti-la em palavras seria impossível. O vestido realçava cada traço. Eu não deveria ter escolhido aquele vestido. Foi a primeira coisa que pensei quando vi Aurora atravessando o salão.
O tecido negro se ajustava ao corpo dela como se tivesse sido moldado para isso, e a fenda revelava mais do que eu gostaria que outros olhassem. O pior é que fui eu quem mandei o maldito vestido. Achei que seria apenas uma escolha elegante, discreta... mas não.
Os cabelos dela, normalmente lisos e pesados até a cintura, naquela noite estavam diferentes: soltos em ondas e cachos leves que balançavam quando ela caminhava. E os olhos... aquele âmbar vivo, iluminado pelas luzes, pareciam me encarar a cada passo que ela dava.
Aurora tinha uma pele morena suave, cor de sol, típica do nosso povo, mas não tão clara como muitos brasileiros que eu conhecia. Era exatamente esse tom que fazia o preto do vestido se destacar ainda mais, como se tivesse sido pintado nela.
Engoli em seco, sentindo uma pontada de raiva de mim mesmo. Eu não queria que ela fosse bonita daquela forma. Não queria que chamasse atenção. Não queria que todos a olhassem como, inevitavelmente, eu sei que eles fariam isso.
Ela era para ser apenas minha esposa de contrato. Mas, ao vê-la assim... maldita ideia mandar aquele vestido.
— Olha só quem eu encontro... — era a Beatriz. — Leonardo Vasconcellos, há quanto tempo!
Beatriz era uma amiga de longos anos e também uma grande estilista. Foi por isso que eu mandei ela para cá.
— Já vai algum tempo, mas nós falamos depois. — Ela entendeu, ela sempre entende quando digo isso.
— Certo, eu sei. Ahh, Leonardo, a sua esposa é linda, muito linda e bondosa. Então cuida dela, tá?
Disse ela. Olhei para a minha esposa e vi o rosto dela todo vermelho. Tenho certeza de que não era pela maquiagem.
— Eu sei. — Falei olhando para os olhos dela, e ela me encarava com um olhar que parecia dizer: você é um idiota. Talvez ela pensasse que eu estava mentindo, mas eu sei o que ela é.
— Está pronta? — perguntei, mantendo o tom neutro.
Ela assentiu, com um olhar de resistência que só ela conseguia sustentar diante de mim.
Ofereci meu braço, e quando ela aceitou, senti algo que não deveria sentir.
— Então vamos. — Murmurei. — É hora de mostrar ao mundo como se j**a esse jogo.
E, talvez, de descobrir o quanto esse jogo já estava começando a mudar as regras para mim.
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