Eu dormi. Depois de tudo — do escândalo, das ameaças, da polícia, do medo — eu finalmente dormi. E foi um sono tranquilo, apesar de tudo. Meu corpo e minha mente estavam tão exaustos, que eu não tinha mais energia para ficar acordada remoendo tudo. Foi aquele tipo de sono de exaustão, que desliga o corpo por necessidade, não por escolha. Mas quando acordei, o primeiro pensamento que me atravessou foi uma sombra: E se ele voltar?
Fiquei ali, deitada por alguns minutos, ouvindo o som calmo da manhã invadir o apartamento. O sol espiava pela fresta da cortina lilás, como se quisesse me lembrar que a vida continuava, mesmo quando tudo dentro da gente queria parar.
Levantei devagar, ainda com aquele aperto no peito. Enquanto me arrumava para o trabalho — a calça social preta, a blusa de tecido leve, os cabelos presos num coque improvisado — sentia a tensão se acomodar nos ombros, como se cada gesto precisasse ser feito em silêncio, com cautela.
Preparei um café forte, comi metade de uma torrada e fiquei encarando a xícara como se ela fosse me dar respostas.
Eu precisava de um advogado. Henrique podia gritar o quanto quisesse que o apartamento era dele, mas eu sabia a verdade. E agora, mais do que nunca, ela precisava estar documentada.
Antes de sair, me veio uma ideia. E se o documento estiver aqui? O tal contrato que ele me fez assinar?
Era arriscado mexer nas coisas dele, mas ele não estava ali. E, com a troca da fechadura, talvez ele sequer conseguisse voltar.
Revirei gavetas. Vasculhei a cômoda do lado dele, onde ele guardava papéis, pulseiras de academia, suplementos vencidos, fones sem par. Olhei em pastas antigas, procurei dentro de uma mochila que ele sempre deixava jogada perto do armário. E nada. Nenhum sinal do contrato. Nenhuma cópia. Nenhuma pista. Fechei a última gaveta com um suspiro.
Ele deve ter deixado na academia. Era praticamente o segundo lar dele. Passava mais tempo lá do que no emprego que perdeu. Sempre saía com mochilas pesadas e voltava com histórias que envolviam “negócios” e “contatos” que nunca se concretizavam. Olhei para o relógio e meu coração deu um salto. Quase sete horas. Se me apressasse, ainda conseguiria chegar sem atrasos. Quando cheguei ao trabalho, com a roupa ajeitada, os pensamentos estavam completamente desalinhados. Tentei manter a compostura, sem expressar o caos que estava a minha vida. Sebastian ainda não havia chegado, e aproveitei a calma temporária para fazer o que precisava: tirar uma dúvida. Ou talvez, começar a entender como lutar pelo que era meu. Desci até o setor jurídico, batendo na porta com um nó na garganta. Um dos advogados, o doutor Daniel Farias, me atendeu com gentileza. — Precisa de algo, Isadora? Assenti, com um sorriso tenso. — Se for possível, gostaria de tirar uma dúvida... pessoal. Posso? — Claro. Entra, por favor. Fechei a porta atrás de mim e me sentei, cruzando as pernas, com as mãos unidas no colo. — É sobre um imóvel. Eu... transferi a titularidade para alguém, sem saber exatamente o que estava assinando. Confiei na pessoa. E agora, essa pessoa está dizendo que é dona do apartamento. Mas fui eu quem comprou, quem pagou tudo. Existe alguma forma de reverter isso? Daniel se inclinou um pouco para frente, me ouvindo com atenção. — Você tem cópia dos documentos assinados? — Não. Ele ficou com tudo. — E havia testemunhas? Reconhecimento de firma? — Provavelmente, sim... — murmurei. — Ele disse que era para um processo de abertura de empresa, uma startup. Só me fez assinar uma pilha de papéis. Eu não li tudo. Eu... confiei. Ele suspirou. — Isadora, o que você descreveu é grave. Se você foi induzida ao erro, enganada sobre o conteúdo do que assinou, pode haver argumento jurídico para anulação da transferência. Especialmente se conseguir provar má-fé da parte dele. — E como eu provo isso? — Pode começar reunindo tudo o que comprova que você foi a única responsável financeira pelo imóvel: extratos bancários, recibos de pagamento, financiamento no seu nome, tudo que mostre que, apesar do documento de transferência, ele não teve nenhuma participação econômica. Assenti, sentindo uma onda de ansiedade me invadir. — E enquanto isso...? Se ele tentar voltar? Forçar entrada? Ele tentou isso ontem, e eu troquei a fechadura, até reinstalei o alarme. — Registre boletim de ocorrência, imediatamente. A troca de fechadura e a reinstalação do alarme foram atitudes certas. Se ele ameaçá-la novamente, denuncie. Ele não pode forçar uma entrada. Depois de mais explicações e orientações, eu saí da sala com um misto de alívio e medo. Eu precisava respirar. Estava me sentindo sufocada com aquilo tudo. Voltei para minha mesa ainda absorvendo tudo o que o advogado havia me explicado. As palavras dele giravam na minha cabeça como peças de um quebra-cabeça: "provar má-fé", "reunir extratos", "denúncia". Termos que me pareciam distantes semanas atrás, e que agora faziam parte da minha rotina como se sempre estivessem ali, esperando para serem enfrentados. Foi só quando me sentei que percebi a movimentação diferente no corredor. A porta da sala de Sebastian estava entreaberta, e por reflexo, chequei o relógio. Ele já havia chegado. Peguei minha agenda, respirei fundo e fui até lá, batendo duas vezes antes de entrar. — Pode entrar — disse a voz dele, firme, mas sem pressa. Empurrei a porta com cuidado e entrei. Sebastian estava atrás da mesa, olhando para algo no computador, mas assim que me viu, desviou os olhos e me acompanhou com o olhar até eu me sentar. — Onde estava? — perguntou, direto, sem qualquer acusação no tom. — No setor jurídico — respondi, folheando minha agenda como se procurar alguma anotação fosse mais importante do que o que vinha a seguir. — Fui tirar uma dúvida. Desculpe se... o fiz esperar. Ele assentiu, e ficou um segundo em silêncio. — É sobre o apartamento? A história que você me contou... do seu ex te fazer assinar uma transferência? Minha garganta secou por um momento. Eu não esperava que ele tivesse prestado atenção. Não daquele jeito. E, de repente, me senti pequena — invadida por um constrangimento infantil, como se aquela parte da minha vida não devesse ser mencionada em voz alta. Muito menos por ele. Assenti com um gesto breve. — É. Sebastian recostou-se na cadeira, cruzando os braços. — Se quiser, posso indicar um advogado de confiança. Discreto. Muito bom. Olhei para ele, surpresa. — Eu... agradeço. Aceito, sim. Vai ser bom ter alguém que saiba por onde começar. — Posso pedir para ele te ligar ainda hoje, se quiser. — Obrigada, de verdade. Ele hesitou por um instante, depois perguntou: — Você está ficando no apartamento? Assenti, devagar. — Estou. Troquei a fechadura e reinstalei o alarme. Ontem à noite ele apareceu lá, tentou entrar, mas um vizinho chamou a polícia. Os olhos de Sebastian se estreitaram sutilmente. — Isso é sério, Isadora. — Eu sei — respondi, baixando o olhar por um segundo, antes de encará-lo de novo. — Mas aquele apartamento é meu. Eu lutei por ele. Trabalhei duro, me privei de muita coisa, passei noites e mais noites acreditando que estava construindo um lar. E ele... ele nunca pagou uma única parcela. Nos três anos que vivemos juntos, fui eu quem segurou tudo. Não vou simplesmente sair e deixar esse espaço para um homem que nunca moveu um dedo para me ajudar. Sebastian me observava em silêncio. Não havia julgamento nos olhos dele. Havia algo mais... uma mistura de respeito e atenção verdadeira. Ele não estava apenas ouvindo. Estava absorvendo. — Entendo — disse por fim, com um leve aceno de cabeça. — Mas se sentir que corre qualquer risco, me prometa que não vai hesitar em sair dali. Pelo menos temporariamente. — Prometo — respondi, mesmo sabendo que, no fundo, não estava pronta para isso. Ainda não. — Vou mandar o contato do advogado no seu e-mail. Assenti. — Obrigada. Ele deu um leve sorriso — pequeno, contido, mas suficiente para desatar um pouco da tensão em meus ombros. — Vamos à agenda. O que temos para hoje? — perguntou ele, se endereitando na cadeira. Abri a agenda e o coloquei a par das reuniões agendadas, e um almoço executivo. — O almoço, eu posso adiar, se quiser. — eu disse, observando seu desconforto. — Não precisa adiar. Você poderia ir comigo. — No almoço executivo? — Sim. Você nunca... foi em um, com meu irmão? Arqueei uma sombrancelha e soltei um suspiro pesado. — Augusto me liberava disso. Na verdade, acho que ele não gostava muito da ideia de me incluir nessas reuniões, mesmo em almoços. — Isso é curioso. Eu não o conhecia... tão bem. Mas sabia que ele era peculiar. — Vocês não foram... criados juntos? Desculpe se eu estiver sendo invasiva. — Tudo bem. — ele suspirou levemente — Somos irmãos do mesmo pai, mas de mães diferentes. — Isso explica o fato de serem tão diferentes. — Diferentes como? — Suas personalidades... não são completamente distintas. Vocês não se parecem em nada, e isso é... um alívio. Sebastian estreitou os olhos. — Fui criado fora do Brasil. Nasci aqui, mas aos oito anos, fui mandado para os Estados Unidos, e nunca mais voltei. Só... voltei agora, para assumir o lugar de Augusto. Por isso me sinto tão... deslocado. — Entendo... — Isadora... sobre aquela noite... — Não precisamos falar disso. Foi um erro, certo? Aconteceu porque estávamos vulneráveis, mas agora estamos bem... eu acho. Olha, se trabalhar comigo, te deixa desconfortável... — Ei, não é nada disso. Eu só queria dizer que... queria ter conhecido você em circunstâncias melhores. E que eu não acho que tenha sido... um erro. Antes que eu pudesse abrir a boca para responder, o telefone da minha mesa toca, interrompendo, o que quer que fosse, que estávamos compartilhando. Mas, de alguma maneira, foi melhor, porque comecei e ficar confusa. O que seriam "circunstâncias melhores"?