O fim do expediente chegou como um alívio silencioso. O tipo de alívio que não explode em euforia, mas apenas se espalha pelo corpo feito um suspiro longo.
Fechei minha agenda, organizei os papéis sobre a mesa e desliguei o monitor com um toque mais demorado do que o necessário. Não havia mais nada para ser feito naquele dia, pelo menos não ali. Mas, mesmo com tudo encerrado, continuei sentada por alguns minutos, encarando minha própria hesitação.
E agora, Isa? Pra onde você vai?
Pensei em Olívia. Sabia que ela me acolheria de novo sem pestanejar, mas talvez eu precisasse encarar meu próprio espaço. Meu próprio caos.
Torci, com todas as forças, para não dar de cara com Henrique. Só queria um banho, roupas limpas, um canto silencioso para existir sem perguntas. Era pedir demais?
Levantei devagar e segui para o elevador. O estacionamento estava com aquele ar abafado do fim do dia, cheio de buzinas ao fundo, motores ronronando, faróis piscando. Gente indo embora com olhares cansados e passos apressados. E foi ali, encostado próximo à entrada do subsolo, com o celular na mão e o olhar meio distante, que eu o vi: Sebastian.
Ele parecia estar esperando o carro, distraído, o semblante ainda mais sério do que o habitual. Descera poucos minutos antes de mim, provavelmente para fugir de mais reuniões, ou talvez do próprio pensamento.
Pensei em passar direto, mas ele levantou o olhar e nossos olhos se encontraram, como se algo dentro de mim dissesse que aquela conversa precisava acontecer.
— Está tudo bem? — perguntei, me aproximando devagar, com um tom calmo.
Ele guardou o celular no bolso e deu de ombros.
— Acho que... não. Não exatamente. — Fez uma pausa, olhando para algum ponto indefinido do chão acimentado. — É tudo muito estranho ainda. Voltar, estar aqui. Não sei bem o que estou fazendo da minha vida.
Fiquei em silêncio por um momento, absorvendo o que ele dizia — e, principalmente, a forma como dizia. Não era drama. Era desalinho.
— Parece que você precisa conversar — sugeri. — Que tal um drink? Me deve uma desculpa pela ressaca de ontem.
Ele soltou um riso breve, baixinho.
— Hoje não. Preciso estar sóbrio. Tenho um jantar para lá de indigesto. — Fez uma careta discreta. — Duvido que consiga engolir qualquer coisa, mas... é o tipo de jantar que eu não consigo... fugir.
Não deu mais detalhes, e eu não perguntei. Algumas dores não pedem explicações — só espaço.
O carro dele chegou, preto, elegante, o motorista saindo rapidamente para abrir a porta. Ele hesitou um segundo, depois me olhou de novo.
— Obrigado, Isadora. Pelo dia de hoje. Pela ajuda com... tudo.
Assenti, com um meio sorriso.
— Até amanhã, Sebastian.
Ele entrou no carro. E eu fiquei ali, com a sensação de que aquela conversa, por mais curta que fosse, deixou algo suspenso no ar. Talvez fosse a estranha cumplicidade de dois desconhecidos tentando se reencaixar em realidades que não escolheram. Ou talvez... fosse só o eco do que ainda não foi dito.
Peguei minhas chaves e caminhei até meu carro. Hoje, eu voltaria para casa, mesmo que já não soubesse direito o que “casa” significava.
Quando parei em frente ao prédio, respirei fundo. O céu ainda guardava vestígios da luz do dia, mas o horizonte já se rendia ao azul escuro da noite. Havia um silêncio estranho no ar, como se tudo estivesse suspenso, à espera da minha coragem.
Subi devagar, com as chaves entre os dedos, o coração batendo mais alto que meus passos. Quando abri a porta, o cheiro familiar me invadiu — uma mistura de lavanda antiga, um pouco de poeira, e algo indefinido, como saudade mal resolvida.
Henrique não estava ali. O vazio do apartamento me respondeu antes mesmo que eu cruzasse o primeiro cômodo. E por um lado, isso foi um alívio. Por outro… ver o estado em que ele deixou tudo foi como tomar um tapa de realidade. O lugar estava um caos.
Roupas jogadas pelo chão da sala, embalagens vazias de comida em cima da mesa de jantar, sapatos espalhados como se alguém tivesse feito questão de destruir a ordem. O quarto então... parecia que tinha sido atravessado por um furacão. A gaveta da cômoda estava aberta, com meias penduradas, camisas amassadas no chão. Uma das almofadas estava rasgada, e até o tapete parecia deslocado, como se tivesse sido chutado no caminho. Fechei os olhos por um instante. Respirei fundo.Tomei um banho rápido enquanto ele não chegava. Deixei a água quente cair sobre os ombros como se pudesse apagar a raiva grudada na pele. Quando saí, ele já estava na porta.
— Boa noite. Me disseram que a senhorita precisa trocar a fechadura?
— Preciso, sim. E... que seja uma bem resistente.
Ele assentiu, profissional, sem perguntas. Em menos de vinte minutos, meu passado perdeu o acesso à minha porta.
Ainda com a toalha nos cabelos, liguei para a empresa de segurança e pedi a reinstalação do alarme. Eles haviam retirado o serviço meses atrás, quando Henrique reclamou que o barulho do aviso o irritava toda vez que esquecia a senha. Na época, achei que fosse exagero. Hoje... parecia óbvio.
A equipe chegou mais rápido do que eu esperava, e enquanto os técnicos cuidavam da central, meu celular vibrou. Olívia. — Onde você está? — foi direto ao ponto, voz preocupada. — Em casa — respondi, sentando no braço do sofá. — Quer dizer... no apartamento. Henrique não está. Acho que ele deve estar por aí... curtindo em algum lugar. Ou... com sorte, tão perdido que não consiga voltar. — Isa... — Eu tô bem. Troquei a fechadura. E reinstalei o alarme. Lembra aquele alarme que ele odiava? Pois é. Está de volta. Olívia ficou em silêncio por um segundo. — Se você precisar de qualquer coisa, ou quiser vir pra cá, você sabe que pode, né? — Eu sei — sorri, de verdade. — Obrigada. Houve uma pausa curta, depois ela disse: — E o novo chefe? Alguma novidade? Fechei os olhos e respirei fundo. — Ah... bom. Eu transei com ele. — Você... O QUÊ? — ela praticamente gritou. — Como assim você transou com seu chefe? Que loucura é essa, Isa? — Foi antes de saber quem ele era — expliquei, sem conseguir conter o riso nervoso. — Na noite passada... Era só um... desconhecido bonito, bêbado, no meio da chuva. Achei que nunca mais fosse ver. E hoje ele era o homem na cabeceira da reunião. — Isadora... Eu preciso de detalhes. Como isso aconteceu? Você sabe que esse tipo de coisa precisa ser relatada. É sororidade. — Eu te conto depois, com calma. Hoje... hoje eu só preciso dormir. Estou exausta. — Tá. Mas amanhã eu vou atrás desse relatório completo. E se ele for um babaca, já deixo minha indignação preparada. Sorri. Olívia era minha âncora. A lembrança de que eu ainda era feita de partes boas, mesmo depois de tanto estrago. — Boa noite, Liv. — Boa noite, Isa. Dorme. Amanhã é um novo capítulo. Literalmente. Fique bem, gata. Desliguei e olhei ao redor. O apartamento ainda tinha rastros dele, mas agora estava cercado de novos limites. Portas trocadas, códigos atualizados, cheiros que em breve seriam só meus. Fui até a cama, deitei e puxei o cobertor com um suspiro pesado. Eu já estava quase adormecendo quando as batidas começaram. Secas. Fortes. Impacientes. Abri os olhos de súbito, o corpo em alerta, e antes mesmo de sair da cama, soube quem era. Não precisava ver. O som daquelas batidas era o eco da minha angústia. Era Henrique. Levantei devagar, com o coração acelerado, e fui até o corredor, mas sem chegar perto da porta. As batidas ficaram mais insistentes, e agora ele chamava meu nome com a voz alterada. — Isadora! Abre essa porta! Acha que pode me tirar daqui assim? Fechei os olhos, respirei fundo. — Vai embora, Henrique! — gritei de onde estava. — Ou eu chamo a polícia! — Chama! Vai! — ele berrava do lado de fora. — Vamos ver o que a polícia vai dizer quando souber que esse apartamento tá no meu nome! Meu corpo tremia. As mãos frias, a garganta seca. Ele batia com tanta força que, por um segundo, achei que fosse conseguir arrombar. — Você é uma maluca! Ingrata! — ele cuspiu. — Eu devia... Não ouvi o final da frase. Um dos vizinhos começou a gritar do corredor. — Já chamei a polícia, hein! Vá incomodar em outro lugar! O silêncio veio como um corte. Henrique parou de bater, mas continuou ali, do outro lado, respirando alto, rosnando coisas que eu não conseguia entender. Dei alguns passos para trás, tentando manter a calma, tentando parecer inteira — mesmo estando feita de estilhaços. Demorou alguns minutos até a campainha tocar de novo. Um toque mais contido. Fui até o olho mágico. Era um policial, acompanhado por outro. Abri a porta, ainda em alerta. — Boa noite, senhora. Recebemos uma denúncia de perturbação e possível ameaça. O homem lá embaixo disse se chamar Henrique Martins. Ele mora aqui? Engoli em seco. — Morava. Ele é meu ex-namorado. A gente não está mais junto. Moramos juntos por três anos, mas nos separamos... recentemente. Um dos policiais anotava enquanto o outro observava com atenção. Henrique ainda estava no corredor, a poucos metros, com os braços cruzados e um olhar inflamado. Assim que ouviu minha voz, gritou: — Esse apartamento é meu! Ela passou pro meu nome! Fechei os olhos, contei até três. — Se for seu mesmo, Henrique, então mostra as parcelas que você pagou — respondi, com a voz o mais firme que consegui. — Mostra o comprovante do financiamento, do depósito inicial. Mostra qualquer coisa que prove que você contribuiu com um centavo! Ele deu um passo à frente, mas foi contido com um gesto do policial. — Você passou pro meu nome! — ele gritou. — E eu vou entrar! Nem que seja à força! — Você me enganou! — rebati, agora sem conter a raiva. — Disse que era pra abrir uma empresa! Me fez assinar documentos achando que era uma coisa, quando era outra. Eu fui enganada! E vou processar você por isso. Até lá, fica fora do lugar que eu paguei sozinha. Os policiais se entreolharam, depois um deles se virou para Henrique. — Senhor, nesse momento, a prioridade é manter a segurança da senhora. A denúncia veio por ameaça. E a senhora confirmou que se sentiu ameaçada? Assenti com a cabeça, mesmo sentindo um nó se formar na garganta. — Sim. Ele me ameaçou e tentou arrombar a porta. O policial voltou a olhar para Henrique. — Meu conselho, senhor, é que vá para outro lugar essa noite. A situação está instável, e se insistir em ficar, a senhora pode registrar um boletim de ocorrência agora mesmo. Isso vira outra história. — Vai proteger essa mentirosa? — ele vociferou. — Essa traidora? O outro policial deu um passo à frente, firme. — A senhora deseja registrar queixa agora? Olhei para Henrique. O rosto dele estava distorcido pela raiva. Os olhos... aqueles olhos que um dia me olharam com carinho, agora me faziam tremer, mas eu não queria mais brigar. Só queria que ele fosse embora. — Se ele me deixar em paz, não. Mas se voltar a aparecer aqui... aí sim. Aí vai ter denúncia, sim. O policial assentiu e virou-se para Henrique. — Senhor, essa é sua chance de resolver as coisas sem complicação. Vá para outro lugar. Amanhã, se quiser resolver judicialmente, procure seu advogado. Henrique me olhou uma última vez. Não disse mais nada. Mas o olhar... o olhar me atravessou como um aviso. Um tipo de ameaça silenciosa que fez meu estômago revirar. Ele se afastou sob a vigilância dos policiais, e eu fechei a porta devagar, trancando-a com a nova chave. Tive a péssima sensação de que eu nunca conheci Henrique de verdade, durante os três anos de relacionamento.