— O que essas passagens têm de tão bom? — Keven perguntou, recostando-se na cadeira com o copo de suco na mão, como se estivesse tentando entender o motivo da minha empolgação.
Agora que Bella e Petter tinham partido, o clima à mesa era visivelmente mais leve. O peso do teste havia passado. Mas eu ainda sorria com um certo brilho nos olhos.
— Você vai descobrir — respondi, guardando cuidadosamente os bilhetes na minha carteira como se fossem relíquias. — Agora não tem mais pra onde fugir. Você vai ficar comigo até o fim do casamento.
Keven soltou um resmungo e pousou o copo na mesa.
O garçom chegou com a conta. Peguei uma boa quantia em dinheiro e paguei sem pestanejar, indicando para que ele ficasse com o troco. Com um aceno agradecido, o garçom se afastou, e nós saímos do restaurante.
Seguimos lado a lado pela calçada até o carro. Eu tentava manter o clima leve.
— São só algumas semanas. Depois disso, você vai estar livre. — Dei uma risadinha, ainda sem acreditar que estava dizendo aquilo para um cara que, até dias atrás, era apenas mais um rosto em uma noite qualquer.
Keven abriu a porta do carro e entrou com um meio sorriso irônico no rosto.
— Mas você não vai estar.
Parei, com a mão ainda segurando a porta do motorista. As palavras dele ficaram no ar, carregadas de algo que eu não sabia nomear. A princípio, soaram como uma piada... mas havia um tom ali que me fez hesitar.
Fiquei parado por um instante, tentando entender.
— Você vai entrar ou não? — ele perguntou, num tom neutro, mas firme.
Esfreguei os braços, tentando dissipar o calafrio que correu pela pele antes de entrar no carro.
— O que você quis dizer com aquilo? — perguntei enquanto ligava o motor, tentando soar casual, mesmo com a tensão subindo.
Imagens de séries de suspense passaram pela minha cabeça. Do tipo em que a brincadeira vira drama, e o que era um acordo informal se transforma numa armadilha.
— Você não vai tirar meu sono, né? — insisti, lançando um olhar de soslaio. Ainda não sabia se ele estava brincando ou sendo perturbadoramente sério.
Keven virou o rosto devagar e me encarou pelo espelho retrovisor. Um meio sorriso se formou em seus lábios.
— Vou te arrastar direto para o altar.
Fiquei paralisado, tentando processar o que ele acabara de dizer. Talvez eu tivesse cometido um erro. Um enorme erro.
O canto dos olhos de Keven se enrugou e ele soltou uma risadinha abafada.
— Vai buzinar pra você de novo — disse, apontando sutilmente com a cabeça para a estrada à frente.
Pisquei algumas vezes e voltei meu foco para o trânsito. Toquei o acelerador. Gostaria de acreditar que minha vida valia mais do que um simples sinal verde, mas, ainda assim, continuei dirigindo. No primeiro estacionamento que avistei, entrei e estacionei o carro.
Não dava para continuar dirigindo com aquela conversa borbulhando dentro de mim. Era muita informação atravessada no peito.
— O que estamos fazendo aqui? — Keven perguntou, olhando ao redor, curioso.
Balancei a cabeça e suspirei, tentando ordenar os pensamentos.
— Nada. Só... eu simplesmente não consigo fazer isso e dirigir ao mesmo tempo.
Ele se virou lentamente para mim, com o semblante meio confuso.
— Fazer o quê?
Encarei-o por um momento, com o motor desligado e o silêncio do carro pesando entre nós.
— Você quer mesmo casar comigo?
Ele levou três piscadas antes de soltar uma gargalhada alta, como se eu tivesse contado a melhor piada do mundo.
— Acha mesmo que eu quero você como noivo? — Ele se endireitou no banco, ainda rindo, e soltou um longo suspiro.
Franzi a testa, sentindo o calor subir pelas bochechas.
— Mas você disse...
Minha voz falhou um pouco no tom, subindo como a de alguém que não sabe se está magoado ou apenas confuso.
— Eu estava brincando — ele respondeu, erguendo as sobrancelhas como se fosse óbvio. — Nunca ouviu falar em trocadilhos?
Aquilo estava ficando mais absurdo a cada segundo. Suspirei fundo.
— Então você não vai se casar comigo?
Ele me olhou, agora sério.
— Não. Com você, não. Acho que... eu não seria capaz de amar você de verdade.
Houve um silêncio desconfortável. Tentei não levar para o lado pessoal — pelo menos não demais. Dei de ombros como se aquilo não tivesse me atingido.
— Certo. Por acaso mesmo. — Tentei parecer casual. — Então o que você pretende fazer depois do casamento?
Keven se recostou no banco, agora mais relaxado, cruzando os braços.
— Ainda não sei. Mas, no momento, eu tenho um casamento pra ir. E você vai comigo.
Soltei um suspiro, percebendo que estava me preocupando à toa.
— Não sabia que você tinha amigos aqui — comentei, ajeitando-me no banco. Keven inclinou levemente a cabeça para o lado e ergueu as sobrancelhas com um sorriso contido.
— Claro que tenho — respondeu, dando de ombros, como se fosse óbvio.
— Conhece o garçom? — perguntei, tentando não soar desconfiado demais. — Notei que vocês conversaram antes mesmo de chegarmos à mesa.
Ele soltou um sorriso sarcástico.
— Eu sou um desconhecido para você... mas não para esta cidade, né? É um amigo. Trabalha comigo na boate. Você não percebeu? — Ele ergueu o queixo, desafiando minha memória. — Foi pra ele que você pediu uma bebida naquela noite. No quarto nove.
Engoli em seco. Era verdade. Como eu não tinha notado?
— Mas por que você quis ter dois empregos? — perguntei, com curiosidade real.
Ele não hesitou.
— Eu tenho um sonho, assim como você. E a boate me dá mais do que dinheiro. Me dá oportunidade. Me ajuda a juntar o que preciso.
O olhar dele estava firme. Honesto. E, embora sua paciência parecesse se esgotar, ele ainda mantinha o tom calmo.
— Pode fingir que não ouviu isso, se quiser — completou, como quem desistia de tentar se explicar.
Antes que eu pudesse rebater ou mudar de assunto, ele emendou:
— Escuta, eu só estou aqui porque você disse que faria tudo o que eu quisesse. E também porque prometeu pagar os dias que eu ficaria longe dos meus dois empregos. Eu sei que dinheiro você tem. Com sua ajuda e mais algumas noites na boate, eu consigo deixar essa cidade.
Não respondi. Não precisava. O olhar dele, determinado, já dizia tudo. Keven queria sair dali. Recomeçar. E não parecia estar mentindo.
— E então? — ele perguntou, desviando o foco com um sorriso enviesado. — O que quer fazer esta noite?
Havia tanta coisa que eu ainda queria... Mas preferi seguir o fluxo.
— Quer ir à boate? — sugeri, lançando um olhar provocador.
Ele sorriu, dessa vez com genuína diversão nos olhos.
— Hoje é por minha conta.
Franzi o cenho, intrigado.
— Por sua conta? Como assim? — soltei uma risada cética. — Tem certeza de que consegue bancar o incontrolável Asllan?
Keven deu uma risada leve, como se soubesse exatamente o que eu estava pensando, mesmo sem ouvir uma palavra.
— Você vai ver quando chegar lá.
Suspirei, entre curioso e animado. A noite parecia prometer. Talvez fosse só o começo... Mas já sabíamos: nossa vitória precisava ser comemorada.
E ninguém melhor do que nós dois para fazer isso com estilo.
Durante a noite...
— Um dos meus irmãos — comentou Keven ao barman, que também era o garçom do Restaurante & Café.
Aproximei-me no exato momento em que o assunto morreu. Aparentemente, minha presença bastava para isso.
— Você tem irmãos? — perguntei, ofegante. A revelação caiu como aquelas cenas de fim de capítulo de novela. Só que, neste caso, sem aquele drama exagerado que nos faz contar as horas para o próximo episódio.
— Eles são mais novos ou mais velhos que você? — emendei, curioso.
Keven não respondeu. Nem confirmou, nem negou. Apenas segurou minha mão com firmeza e me guiou até nossa mesa. Quando nos sentamos, disparei mais uma pergunta, num tom leve:
— Espera... Quantos anos você tem mesmo?
Definitivamente, ele não parecia ter apenas dois anos a mais do que eu.
Ele franziu as sobrancelhas, visivelmente irritado.
— Por que esse interesse todo de repente?
Abaixei o olhar, percebendo que talvez tivesse exagerado na dose de perguntas. Dei de ombros.
— É que... já que estamos aqui, quero te conhecer melhor. E quem sabe, depois, a gente aproveita mais a noite.
Ele desviou o olhar lentamente, como se ainda pensasse se valia a pena continuar o papo. Após alguns segundos, murmurou:
— Bom... então por que você não começa falando sobre você?
O tom dele era inseguro, mas aberto. Keven fez um gesto com a mão, indicando que a palavra estava comigo. Um gesto quase teatral, como se dissesse: “A cena é sua.”
Suspirei. Aquilo não soava tão espontâneo quanto poderia, mas era um começo.
Resmunguei algo irreconhecível antes de revirar o baú da minha cabeça em busca de memórias que valessem ser compartilhadas.
Troquei a chave do clima. Deixei de lado o interrogatório e comecei, finalmente, a falar sobre mim. Coisas simples, bobagens de infância, fatos engraçados. Aos poucos, Keven relaxava e ria baixo de algumas histórias.
E, naquela noite, com o som ao fundo e a luz baixa, deixamos de lado as encenações. Esquecemos os acordos e papéis ensaiados.
Pela primeira vez, começamos a agir como dois desconhecidos que, talvez, quisessem mesmo se conhecer de verdade.