Keven é mais obediente do que imaginei. Quando saímos do residencial, ele me seguiu até o carro em silêncio, e entrou. Pedi que colocasse o cinto de segurança — não por preocupação com segurança, mas para o alarme não começar a apitar.
— Pra onde estamos indo? — ele perguntou, com aquele tom descompromissado de quem ainda não decidiu se confia ou não.
— Shopping. Você precisa de roupas mais apresentáveis — respondi, virando-me no assento para encará-lo. Ajeitei o espelho retrovisor e, mesmo sem querer, reparei na aparência dele — os dentes levemente desalinhados, a barba por fazer, o jeito meio largado.
— Você já pensou em usar aparelho? — perguntei, tentando soar casual. Ele me olhou com uma sobrancelha arqueada, depois soltou uma risadinha debochada, típica de quem está pouco se lixando pra estética.
— Você é bem metido, sabia? — respondeu. Mas não retrucou. Fechou a boca e ficou olhando pela janela, como se tentasse decifrar o caminho.
No shopping, puxei Keven até a primeira loja de roupas masculinas que vi. Ele hesitou, desconfiado, como se nunca tivesse pisado ali.
— Ei, vai com calma — disse com a voz grossa, meio grave demais para a situação, o que me fez rir.
— Você precisa maneirar nesse jeito ogro de falar — rebati, tentando aliviar o clima. — Vai assustar os vendedores.
Ele deu de ombros, mas suavizou o tom.
— Assim tá melhor?
Assenti com a cabeça.
— Bem melhor. Agora, vamos escolher roupas que não pareçam saídas de um brechó dos anos 90.
Rodamos pela loja e, aos poucos, ele foi se soltando. Pegava algumas camisetas pretas, jaquetas jeans, calças com cortes retos. Tudo com um quê de roqueiro de rua — o estilo dele, claramente.
— E os tênis?”, perguntei, apontando para um modelo simples, discreto.
— Isso aí é coisa de boy rico. Prefiro meus Vans.
Suspirei e deixei passar.
Com os braços cheios de roupas, seguimos para o caixa. Enquanto o atendente passava as peças, me virei para Keven e sussurrei, num tom meio provocativo:
— Você vai passar seu cartão, né?
Ele revirou os olhos e, com uma agilidade impressionante, tirou do bolso um maço de dinheiro enrolado com um elástico. Não quis saber de onde veio, mas parecia legítimo.
— Tá brincando comigo? — perguntei, olhando os cem reais nas minhas mãos. Tudo em nota de dois reais. Ele deu um meio sorriso, típico de quem sabe impressionar sem esforço.
Paguei as roupas e devolvi o dinheiro para ele. Agora, era hora de buscar algo mais sofisticado.
— Você prefere terno pronto ou sob medida? — perguntei, enquanto caminhávamos pelos corredores. Keven fez uma careta.
— Terno? Sério?
— Sim. Pelo menos um. Vai por mim.
Ele deu de ombros.
— Tudo bem.
Entramos numa loja mais elegante. Um dos vendedores nos levou até uma sala de espelhos com uma plataforma no centro. Explicou que o alfaiate viria em instantes.
Enquanto esperávamos, decidi que daria tempo de levar as sacolas até o carro. Virei para Keven e expliquei:
— Fica aqui. Só vou guardar isso tudo no carro e já volto.
Ele levantou as sobrancelhas, mas não disse nada. Estava começando a se acostumar a ser guiado — pelo menos por mim.
Ao retornar, encontrei Keven no mesmo lugar, mas com um olhar inquieto. Estava andando em círculos como se quisesse sair dali.
— Tá tudo bem? — perguntei, percebendo a tensão em seus ombros.
— Sei lá… ficar aqui parado, esperando alguém mexer no meu corpo. Não é muito minha praia.
— Você tem medo de ficar sozinho? — provoquei, tentando entender.
Ele me encarou de frente, sério.
— Medo? Eu? Não viaja.
Tive que rir da forma como ele tentou se afirmar. Mas estava claro que algo o deixava desconfortável ali — talvez os espelhos, talvez o terno, talvez a ideia de estar se transformando em algo novo.
Aproximei-me devagar, colocando a mão em seu ombro.
— Se alguém tem medo aqui, sou eu. Medo de você sair andando e desaparecer. Então, fica. Só mais um pouco.
Ele me olhou com expressão mais suave e, sem dizer nada, voltou a subir na plataforma.
— Agora relaxa e deixa o alfaiate fazer o trabalho. Depois, prometo que a gente come alguma coisa.
Keven assentiu, ficou em silêncio. Sem resistências, sem provocações. Talvez fosse esse o começo — não de uma transformação mágica, mas de uma nova versão dele, mais lapidada, ainda bruta, mas agora com alguém disposto a mostrar que o mundo também pode ser diferente do que ele conhecia.
Crise evitada.
Ainda estava com vontade de dar uma volta no shopping. Então lancei a pergunta: — Posso ir? Só um pouquinho. Keven me lançou um olhar de canto, daqueles que dizem “não me testa”, mas antes que ele pudesse abrir a boca, emendei:
— Prometo ser rápido. E se precisar de mim… pode mandar mensagem, eu respondo na hora.
Dei um estalo de dedos só para brincar, como se dissesse "fácil assim". Sorri e saí pela porta, deixando Keven, ainda meio cético. Ele ia ficar bem, pensei. Não era como se fosse explodir o apartamento ou algo do tipo.
Respirei fundo e voltei rapidamente, só para deixar claro:
— Ei, nada de fazer merda, tá? Seja gentil com as pessoas.
Inclinei o corpo para dentro do quarto, só a cabeça mesmo, e deixei o aviso com um meio sorriso. Encontrei o reflexo dele nos espelhos do corredor e trocamos um olhar rápido antes de eu sair de vez.
Depois de algumas lojas e vitrines, minha cabeça já estava cheia de possibilidades. Roupas, talvez um presente… não sabia exatamente o quê. Só queria espairecer.
Foi aí que escutei a voz de alguém – ou melhor, a voz de Keven – como se estivesse bem ao meu lado:
— Prometo ser rápido.
A frase surgiu tão abrupta que me fez virar o pescoço como um raio. Meu coração quase saltou pela garganta. Olhei ao redor. Ninguém. Nenhum sinal de Keven. Nenhuma câmera escondida, nem amigo pregando peça.
Foi só minha cabeça? Talvez.
Tentei rir da situação e seguir em frente, mas alguns passos depois… lá estava de novo:
— Eles já acham que você é doido — murmurou, e dessa vez tive certeza que vinha de dentro. Mas não era uma alucinação. Era a lembrança da voz dele, talvez. Aquelas frases que ficam ecoando na memória. Isso acontece, certo?
— Sai da minha cabeça — sussurrei baixinho, com vergonha de mim mesmo.
Esperei um pouco, e nada. Silêncio. Suspirei aliviado e continuei. Comprei um presente para Belly, e para mim uma jaqueta jeans e uns óculos de sol que imaginei ficarem incríveis em Keven. Ele teria o estilo perfeito para aquilo: skatista, meio largado, mas com aquele toque de rebeldia que combina com um par de lentes escuras.
A caminho de onde ele estava, já quase encerrando as compras, a “voz” voltou:
— Onde você se meteu?
Dessa vez, quase deixei a sacola cair. Dei um pulo discreto e olhei ao redor, ainda fingindo que estava tudo bem. Estava a poucas lojas de distância da que havíamos combinado.
— Voltei — perguntei, como se ele pudesse ouvir, só pra mim mesmo. Aquela mania de falar sozinho voltando à tona. — Cadê você? — comentei mentalmente, como se nossa conversa imaginária ainda estivesse em curso. Era até útil fingir que ele respondia. Fazia parecer menos solitário.
Assim que entrei na loja, meus olhos encontraram os de Keven. Estava parado no caixa, vestindo um blazer escuro por cima de uma camiseta de banda. Elegante à sua maneira. E parecia bem.
Ele se virou, como se tivesse sentido minha presença.
— Chegou bem na hora. Na hora de pagar — disse, com um meio sorriso.
Cheguei ao balcão enquanto a atendente embalava o que parecia ser metade da loja. Eram várias sacolas, e ele pegou tudo com naturalidade.
— Quanto deu isso tudo? — perguntei, já sabendo que seria um valor absurdo.
— Uns dez mil, mais ou menos — respondeu com a maior calma do mundo.
Soltei uma risadinha involuntária. Não sei se foi nervoso ou espanto. Mas era típico dele. Sempre cheio de atitude, sempre com cara de “tá tudo sob controle”.
— Então, para onde vamos? — ele perguntou.
Olhei no relógio. Estava quase na hora do jantar.
— Vamos comer alguma coisa? — ofereci, enquanto ajustava as alças das sacolas nos braços. Fiz uma pausa e me virei para ele. — Aliás… você se alimenta, né?
— Nunca fui muito de restaurante, mas topo experimentar.
Assenti, sorrindo com a resposta.
— Você vai adorar — garanti, enquanto procurava um canto vazio para encostar. As sacolas estavam ficando pesadas e precisei deixá-las no chão por um momento.
Olhei para ele e joguei a ideia:
— Você pode levar isso tudo para o carro?
Ele deu de ombros, abaixou-se, pegou as sacolas e saiu andando, sem frescura.
Após alguns minutos, retornou.
— Perfeito. Agora sim. Vamos! — falei, puxando-o pelo braço em direção a um dos restaurantes da praça de alimentação.