O sol nasceu como uma ferida aberta no céu de São Paulo, manchando as nuvens com tons de laranja e roxo. Para Gabriel, no entanto, a cidade não tinha cor. Era apenas um tabuleiro de concreto e vidro, e uma nova peça, desconhecida e hostil, havia entrado no jogo. A mensagem do cliente ecoava em sua cabeça, fria e definitiva: “Um substituto já foi ativado.”
Ele não havia dormido. A noite fora um longo ritual de preparação, um batismo de sua nova missão. Agora, com a primeira luz do dia, ele estava em seu posto. O apartamento abandonado, antes um esconderijo para um caçador, havia se tornado a torre de vigia de um guardião.
A Dragunov estava montada, sólida e pesada sobre o tripé. O metal gelado contra sua pele era um velho conhecido, mas o propósito da arma era novo. A coronha de madeira, agora marcada com o nome dela, parecia mais quente em suas mãos. Lara. Um lembrete constante de que cada respiração sua, a partir daquele momento, servia a um único objetivo: mantê-la respirando.
Ele levou o olho à luneta, mas não procurou por Leônidas Tavares. Seus olhos varriam os telhados vizinhos, as janelas dos prédios em frente, as esquinas das ruas. Ele não estava mais procurando um alvo. Estava procurando a si mesmo. Ou melhor, uma versão de si mesmo. Um outro homem que, como ele, sabia como se mover nas sombras, como se tornar invisível, como esperar pacientemente pelo momento perfeito para tirar uma vida.
— Onde você está? — murmurou para o silêncio do quarto, a voz rouca pela falta de sono.
Seu instinto, afiado por anos de contratos e fugas, estava em alerta máximo. Ele analisava cada movimento na rua abaixo. Um entregador que parava por tempo demais. Um carro que passava devagar com os vidros escuros. Tudo era uma ameaça em potencial. O substituto poderia ser qualquer um. Poderia ser mais metódico que ele, ou mais impulsivo. Poderia ser do tipo que prefere a distância de um rifle, como ele, ou um assassino que gosta de chegar perto, de usar facas ou veneno. A incerteza era uma tortura.
O café que ele bebeu mais cedo já tinha esfriado e deixado um gosto amargo na boca. Seus músculos estavam tensos, uma mola comprimida pronta para saltar a qualquer instante.
Por volta das oito da manhã, a rotina na mansão começou. Um carro preto saiu da garagem, provavelmente levando Leônidas para algum compromisso de negócios. Gabriel nem se deu ao trabalho de seguir o veículo com a mira. O alvo não era mais o pai. O perigo real era para quem ficava para trás.
E então, ele viu.
Não era um brilho de luneta em outra janela. Não era um homem de sobretudo numa esquina. Era algo muito mais sutil, e por isso mesmo, mais perigoso.
Uma van branca, com o logotipo de uma empresa de internet desbotado na lateral, estacionou do outro lado da rua, a uns cinquenta metros da entrada da mansão. Gabriel franziu o cenho. Não havia nenhum serviço agendado para aquela área que ele soubesse. Ele havia memorizado a rotina de todos os serviços públicos do bairro.
Um homem desceu da van. Usava um uniforme azul, um boné e carregava uma caixa de ferramentas. Tinha uma aparência comum, o tipo de pessoa que se mistura à paisagem urbana sem chamar a atenção. Mas para Gabriel, ele era um grito de alarme.
O homem não foi até os postes de fiação. Não olhou para os cabos. Ele ficou parado ao lado da van, acendeu um cigarro e começou a observar a casa. O olhar não era o de um trabalhador entediado. Era focado. Analítico. Ele estava medindo distâncias, observando os movimentos dos seguranças, estudando os ângulos das câmeras.
Gabriel ajustou o foco da luneta, aproximando o rosto do homem. Era mais velho que ele, talvez na casa dos quarenta. Tinha uma cicatriz fina que descia do canto do olho até a bochecha e mãos grossas, de quem não se importava em sujá-las. Havia uma frieza em seus olhos, uma ausência de emoção que Gabriel conhecia muito bem, pois a via no espelho todos os dias. Ou, pelo menos, costumava ver.
O coração de Gabriel começou a bater mais forte, um tambor surdo no peito. Era ele. O substituto.
E o pior estava por vir.
O portão lateral da mansão se abriu e Lara saiu.
Ela usava uma calça de moletom cinza e uma camiseta larga, os cabelos presos num rabo de cavalo. Carregava uma pequena caixa de papelão, provavelmente para o lixo reciclável. Estava distraída, com fones de ouvido, cantarolando uma música que só ela podia ouvir.
O homem do outro lado da rua apagou o cigarro com a sola da bota e seu corpo ficou tenso. Ele deu um passo discreto em direção à entrada, a mão direita deslizando sutilmente para dentro da jaqueta do uniforme.
O mundo de Gabriel se reduziu àquele instante. A distância era de quase duzentos metros. Um tiro limpo. Mas ele não podia atirar. Um disparo de um prédio abandonado entregaria sua posição, sua existência, e colocaria um alvo ainda maior em suas costas e nas dela.
Seus dedos agarraram o rifle com tanta força que os nós ficaram brancos. Ele posicionou a mira. Não em Leônidas. Não em Lara. Mas no centro do peito do homem disfarçado de técnico. Ele prendeu a respiração, o suor começando a se formar em sua testa. Se aquele homem sacasse uma arma, se ele fizesse qualquer movimento brusco em direção a ela, Gabriel não teria escolha. Ele atiraria. E que o mundo viesse abaixo depois.
Lara depositou a caixa na lixeira e se virou para voltar. Por um segundo, seu olhar pareceu cruzar a rua, passando pelo homem sem vê-lo, como se olhasse para algo muito mais distante. Ela sorriu para o nada, talvez por causa da música, e entrou novamente, o portão se fechando atrás dela com um clique metálico suave.
O homem relaxou os ombros. Deu uma última olhada para a casa, entrou na van e foi embora, com a mesma calma com que chegou.
Gabriel soltou o ar, o corpo todo tremendo com a adrenalina contida. Ele se afastou da janela, as pernas fracas. Apoiou as costas na parede descascada e deslizou até o chão, a cabeça entre os joelhos, tentando controlar a respiração ofegante.
Aquilo tinha sido perto demais. Perigosamente perto.
Ele entendeu, com uma clareza aterrorizante, que vigiar daquela janela não era mais suficiente. Ser um anjo da guarda invisível não funcionaria. O substituto era ousado. Ele chegava perto. E isso significava que Gabriel também precisava chegar. Precisava ser uma barreira física, não apenas um olho no céu.
A ideia que se formou em sua mente era insana. Rompia todos os protocolos de sua antiga vida. Era um convite ao desastre. Mas era a única que fazia sentido.
Ele não podia simplesmente aparecer e dizer: “Oi, Lara, sou um assassino de aluguel que falhou em matar seu pai e agora estou aqui para te proteger de outro assassino.”
Precisava de uma desculpa. Um pretexto. Uma razão plausível para estar por perto.
Seus olhos correram para o quadro que ele havia comprado na galeria, agora pendurado na parede como um farol em sua escuridão. A galeria. Marina. A arte. Aquele era o seu único ponto de entrada. A única ponte para o mundo dela.
Levantou-se, determinado. Guardou o rifle na mochila, mas desta vez, deixou a pistola na cintura, mais acessível do que nunca. Pegou o quadro da parede com um cuidado que não lhe era característico.
Enquanto descia as escadas do prédio, o plano se solidificava. Era um plano frágil, baseado em coincidências forçadas e mentiras bem contadas. Mas era tudo o que ele tinha.
A galeria de arte estava silenciosa quando Gabriel entrou. O mesmo sininho suave soou acima de sua cabeça. A luz da tarde entrava pelas vidraças, iluminando as partículas de poeira que dançavam no ar. O cheiro era uma mistura de tinta a óleo e produtos de limpeza com um toque de café vindo dos fundos.
Marina estava no balcão, organizando alguns catálogos. Ela levantou os olhos quando ele entrou e uma expressão de surpresa seguida por uma desconfiança velada tomou conta de seu rosto.
— Você de novo — ela constatou, sem sorrir. Era uma afirmação, não uma pergunta.
Gabriel forçou um sorriso sem graça, segurando o quadro embrulhado debaixo do braço.
— Eu sei, parece perseguição — ele começou, a voz deliberadamente mansa. — Mas eu tenho um problema.
Marina ergueu uma sobrancelha, cruzando os braços sobre o peito. Sua postura era uma barreira.
— E que tipo de problema seria?
— O quadro. — Gabriel o colocou com cuidado sobre o balcão. — Ele é… ótimo. De verdade. Mas ficou sozinho na minha parede.
Ela o encarou, claramente não convencida.
— Sozinho? — repetiu, o tom beirando o sarcasmo.
— É. Parece que falta alguma coisa. Um companheiro. Algo que converse com ele — explicou Gabriel, sentindo-se um idiota, mas seguindo o roteiro. — Pensei que talvez… vocês pudessem me ajudar a encontrar outra peça.
Naquele exato momento, a porta dos fundos se abriu e Lara surgiu, segurando duas canecas de café. Ela parou abruptamente ao ver Gabriel ali, os olhos verdes se arregalando por uma fração de segundo.
— Gabriel… — O nome dela soou como uma surpresa agradável. — Oi.
— Oi, Lara — ele respondeu, o coração dando um solavanco. Ver ela ali, sã e salva, depois da cena da manhã, era um alívio quase doloroso.
Marina olhou de um para o outro, os lábios comprimidos. Ela parecia uma leoa protegendo sua cria.
— Ele veio comprar um quadro “companheiro” — informou Marina a Lara, sem desviar os olhos de Gabriel.
Lara sorriu, um sorriso genuíno que iluminou seu rosto. Ela se aproximou, deixando uma das canecas na frente de Marina.
— Sério? Qual você comprou?
Gabriel desembrulhou a obra. Era a tempestade azul e cinza. Lara olhou para a pintura e depois para ele, a cabeça levemente inclinada.
— Eu gosto desse. Ele tem uma… energia caótica, mas silenciosa. O que você tinha em mente como companhia? — ela perguntou, o interesse em sua voz parecendo sincero.
Era a chance dele.
— Eu não sei. Não entendo muito de arte — admitiu ele, passando a mão pelo cabelo curto, um gesto que esperava que parecesse nervoso. — Só sei o que eu sinto quando olho. Pensei em algo com mais… luz. Talvez. Para equilibrar.
Lara caminhou por entre as obras, o olhar percorrendo as telas com a familiaridade de quem estava em casa. Gabriel a seguiu com os olhos, hipnotizado pela maneira como ela se movia, pela concentração em seu rosto.
— O que você acha daquele? — ele apontou para um quadro menor, com tons quentes de amarelo e laranja, deliberadamente escolhendo algo que estava perto dela.
Ela se virou, analisou a peça e franziu o nariz.
— Não. Esse grita demais. O seu quadro é um sussurro. Precisa de outro sussurro, não de um discurso — ponderou ela, mais para si mesma do que para ele. Então, seus olhos brilharam. — Já sei.
Ela o guiou até um canto mais afastado da galeria, onde ficavam as peças de artistas novos. Havia um pequeno quadro ali, quase escondido. Eram apenas linhas finas, brancas, sobre um fundo quase preto, que pareciam formar o contorno de um pássaro prestes a voar.
— Este — ela sussurrou, apontando. — É a calma depois da tempestade do seu. É a esperança.
Gabriel não olhava para o quadro. Olhava para ela. Para a paixão em seus olhos quando falava de algo que amava. Para a pequena mancha de tinta azul que ainda estava em sua bochecha, a mesma da foto que Marina havia postado.
— É perfeito — ele concordou, a voz saindo mais baixa do que o planejado. — Vou levar.
Marina, que observava tudo à distância com uma expressão indecifrável, se aproximou.
— Você decide rápido as coisas.
— Quando a gente sabe o que quer, não tem por que esperar — retrucou Gabriel, o olhar ainda fixo em Lara por um segundo a mais do que o socialmente aceitável.
Lara corou levemente e desviou o olhar para o chão, um sorriso tímido brincando em seus lábios.
Enquanto Marina embrulhava a nova compra, Gabriel se virou para Lara.
— Obrigado pela ajuda. Você é boa nisso.
— É o que eu amo fazer — ela confessou, a voz suave. — Fico feliz que tenha gostado.
Houve um silêncio. Não era desconfortável. Era carregado. Um espaço cheio de coisas não ditas.
— Eu… preciso ir — ele disse por fim, pegando o novo quadro. — Mas, quem sabe, a gente não se esbarra por aí de novo.
— São Paulo é grande, mas às vezes parece um ovo — ela brincou, o sorriso voltando.
— É verdade.
Ele se virou e caminhou até a porta. Antes de sair, olhou para trás uma última vez. Lara ainda o observava, e Marina estava ao seu lado, o braço em volta dos ombros dela, protetora.
Ao sair para a calçada, Gabriel respirou fundo o ar poluído da cidade. Ele havia conseguido. Havia fortalecido a ponte. Havia se tornado, aos olhos dela, não mais um estranho, mas o "vizinho" de galeria, o cara misterioso que comprava quadros por impulso.
Mas a sensação de vitória durou pouco.
Do outro lado da rua, parada no ponto de ônibus, uma van branca passou lentamente. A mesma van. O motorista virou o rosto por um instante, e seus olhos frios cruzaram com os de Gabriel.
Não houve reconhecimento. Não houve ameaça. Foi apenas um olhar vazio.
Mas Gabriel sabia. O substituto o tinha visto. Tinha visto ele saindo da galeria. Saindo do mundo dela.
O jogo não era mais de observação.
Agora, era um confronto direto. E a cidade inteira era o tabuleiro.