Quando o morto volta para esmagar os vivos
Leonardo Cassani Sexta-feira. Eles pensaram que estavam sozinhos. Que podiam medir forças na sala oval de vidro, cuspir veneno em frases ensaiadas, rir de uma novata servindo café. Pensaram que a ausência de um corpo significava ausência de olhos. Idiotas. Eu vi tudo. Cada palavra cuspida com arrogância. Cada olhar atravessado. Cada pausa falsa de luto. Não precisei estar presente fisicamente. Eu sou a Cassani’s. Ajudei a fundar os protocolos de segurança que eles ainda hoje usam sem perceber que eu os criei para mim. Microfones ocultos, câmeras discretas, códigos que nenhum conselheiro tem sequer noção de como decifrar. O prédio fala. E eu sou quem escuta. Naquela sexta-feira, eles se revelaram. Clara, impaciente, já querendo nomear sucessor. Henrique, frio, como se a morte fosse um detalhe jurídico. Sofia, calculando percentuais como se a presidência fosse planilha. E Isabella… ah, Isabella. A amante fiel ao cargo, não ao homem. A ponte direta com meu pai. O sorriso venenoso, o perfume caro, a língua afiada. Ela achava que era a única com a chave da sala da presidência. Achava que poderia dosar informações, segurar segredos, se manter intocável. Mas ninguém está intocável. Não diante de mim. E havia mais. A garota nova. Norman Andrade Paixão. Entrou como quem não pertence, mas resistiu como quem sabe esperar. Eu a observei. O olhar dela não era de quem serve café. Era de quem lê números. De quem percebe. E percebi que, cedo ou tarde, ela vai enxergar fissuras que outros não veem. O fim de semana passou como pólvora lenta queimando. No sábado, permaneci em silêncio, revisando relatórios, conectando informações, traçando a lista dos primeiros a cair. No domingo à noite, diante do espelho do apartamento que mantive oculto, vesti o terno que não usava há anos. Gravata alinhada. Relógio herdado. O reflexo devolveu o rosto que eles juravam estar morto. Lorenzo. Mas não era Lorenzo. Era eu. Leonardo. O fantasma no espelho sorriu de volta. Segunda-feira amanheceu cinza, pesada. Mas para mim, o peso era alívio. Era hora de voltar. Cheguei cedo. Antes de todos. Passei pelo saguão invisível aos olhos dos seguranças que ainda obedecem a protocolos que eu mesmo criei. A porta da presidência estava lacrada desde o dia do “acidente”. Eu tinha a chave. Sempre tive. Girei o trinco. O estalo ecoou como um disparo de rifle. Entrei. O cheiro da madeira, do couro, dos livros alinhados. A sala ainda respirava Lorenzo. Respirei fundo. Mas agora, seria minha. Sentei-me na cadeira de couro preto. Minhas mãos tocaram a mesa como quem finca bandeira em território conquistado. E esperei. Oito em ponto, o elevador despejou os primeiros diretores. O som de saltos e passos ecoou no corredor. Um alvoroço repentino. Murmúrios. Vozes tensas. — Quem abriu a sala da presidência? — ouvi Isabella gritar, desesperada. O bater dos saltos dela contra o mármore foi inconfundível. A porta se abriu. Ela me viu. Seus olhos se arregalaram. O sangue sumiu do rosto. O batom vermelho contrastou com a palidez súbita. E então ela caiu. Desmaiou diante de mim, como se tivesse visto um morto. Os outros chegaram logo atrás. O choque foi coletivo. Clara deixou a pasta escorregar da mão. Henrique perdeu a compostura e arregalou os olhos. Sofia levou a mão à boca, em puro horror. Eu me levantei devagar, ajustando o paletó, a postura de quem não deve nada a ninguém. — Reunião em cinco minutos. — anunciei, com a voz firme, cortante. O silêncio pesou como pedra. — Mas… senhor… o senhor está vivo? — gaguejou Clara, a primeira a recuperar a voz. Olhei para ela como se fosse uma criança perguntando o óbvio. — Estou. Qual o problema? Henrique pigarreou, tentando recuperar o tom jurídico: — O senhor… o senhor forjou a própria morte? Sorri frio. — Sim. As bocas se abriram em choque. O ar pareceu sumir. — Precisei descobrir quem está ao meu lado e quem são as cobras. — minha voz ecoou clara, sem pressa. — E fiquem sabendo: a partir de hoje, as cobras serão esmagadas com os meus próprios pés. Silêncio absoluto. O tipo de silêncio que não nasce de respeito, mas de medo. Caminhei até a porta, passei pelos rostos estupefatos e repeti: — Sala de reuniões. Cinco minutos. E saí, deixando para trás o eco da sentença. André e Cíntia chegaram juntos com Norman, cada um segurando pastas, mas o que os três viram fez o sangue gelar: Isabella caída no chão, duas secretárias abanando-a, a recepção inteira em alvoroço. — Meu Deus, o que aconteceu? — Cíntia exclamou, puxando Norman pelo braço para o canto. — Acho que ela desmaiou ao ver o… — André interrompeu, mas a frase morreu na garganta quando os olhos dele pousaram na porta aberta da presidência. Lá dentro, de pé, estava o “fantasma”. O homem que todos juravam morto. O homem que agora parecia mais vivo e mais perigoso do que nunca. Isabella abriu os olhos aos poucos, recobrando a consciência. Quando viu o rosto dele, soltou um gemido trêmulo. — Lorenzo… amor… você voltou pra mim… — estendeu a mão, voz carregada de paixão mal contida. Leonardo conteve o nojo. Cada fibra do corpo gritava para afastá-la, mas o disfarce exigia sangue frio. Curvou-se levemente, sustentando o olhar dela, como quem não negava, nem confirmava. Apenas deixava o teatro continuar. — Mais tarde, Isabella. — disse seco, deixando no ar a ilusão que ela queria ouvir. Minutos depois, todos foram chamados à sala de reunião. O clima era de funeral misturado a tribunal. Diretores e secretárias sentaram-se em silêncio tenso. Norman, de pé com a bandeja, observava cada detalhe, sentindo o peso do momento. Na ponta da mesa, Leonardo se recostou na cadeira, braços cruzados, olhar firme. — E então? — a voz cortou o ar. — Ainda assustados por ver um fantasma? Um dos diretores arriscou: — O que aconteceu? Por que o senhor forjou a própria…? Leonardo bateu a mão na mesa, o som ecoando como trovão. — Ah, é isso que importa pra vocês? A fofoca? Não a empresa? Silêncio sepulcral. — Eu precisava colocar essa porra em ordem. — rosnou. — E a partir de hoje, esse caralho vai mudar. Ou muda… ou vão todos pro olho da rua. O recado estava dado. E quando o silêncio se tornou insuportável, Leonardo deixou o olhar percorrer a mesa inteira e se fixar, por um instante, em Norman. A novata. A invisível. A única que não desviou os olhos dele. O fantasma sorriu, lento, e pensou: talvez a primeira cobra não esteja na mesa… mas atrás da bandeja de café.