Quando o silêncio pesa mais que palavras
LEONARDO CASSANI Eu sou Leonardo Cassani. Agora, único herdeiro do Group Mult Internacional Cassani’s Corporation Security. Cheguei e estou aqui escondido para ver com meus próprios olhos o que se desenha por trás de sussurros e gravatas alinhadas. Preciso descobrir o que está acontecendo na empresa do meu pai. Ele já está cansado; carregou esse império nas costas por anos. E esse baque que ele levou agora não vai ficar barato. Hoje eu observo. Segunda-feira, eu ajo. O ambiente à minha volta é de uma formalidade estéril: vozes baixas, passos contidos, tecido escuro por todo lado. O ar tem aquele cheiro de flores cortadas misturado a perfume caro — uma combinação tão educada quanto fria. É um tipo de cenário em que todos ensaiam o papel perfeito: o do aliado solidário, o do sócio atencioso, o do funcionário leal. E, ainda assim, cada palavra dita parece escolhida não para consolar, mas para medir. Medir forças, medir vantagens, medir quanto vale permanecer calado. Eu não me anuncio. Fico à margem, onde ninguém repara. É impressionante como os poderosos esquecem de olhar para as bordas do quadro quando acreditam que o centro lhes pertence. É nas margens que eu coleto o que me interessa: a posição das mãos, o subir de sobrancelhas, os olhares que se desviam rápido demais. O corpo denuncia o que a boca não tem coragem de dizer. Vejo um diretor veterano falando com um conselheiro. Lábios tensos, sorriso curto. Fingem respeito enquanto fazem a contabilidade íntima de suas próprias oportunidades. Outro, mais jovem, acena frenético para alguém do jurídico — tente disfarçar, mas o suor na nuca o entrega. Gente que aprendeu a sobreviver medindo cada risco e cada atalho como quem escolhe onde pisar num campo minado. Eu não nasci para andar de cabeça baixa em campo minado. Eu aprendi a desarmar o terreno. As paredes frias refletem meia dúzia de conversas que não me escapam. Pequenas ilhas de gente importante repetem frases vazias com entonações carregadas. O fundador — o homem que ergueu tudo — não está aqui. E a ausência dele pesa. O peso da ausência transforma gente adulta em crianças nervosas. Eles se esquecem de que um império tem história, raízes e, sobretudo, olhos. Hoje, os olhos sou eu. Não vim falar com ninguém. Vim ver. Vim gravar os nomes que, na segunda-feira, vou chamar pela ordem certa. Cada rosto anotado, cada silêncio classificado. Em breve, não haverá espaço para improviso. O relógio anda devagar quando a estratégia amadurece. Eu sei esperar. Enquanto isso, deixo as memórias empilharem-se com a precisão de um dossiê: contratos, movimentos, alianças. A Cassani’s é uma fortaleza — e fortalezas não caem por ataques frontais. Elas ruem por dentro, em fissuras que começam invisíveis. Eu vim procurar as fissuras. Um assessor de comunicação cochicha para uma gerente de operações. O gesto das mãos denuncia urgência. Ela acena, rígida. Noto o anel caro, a manicure perfeita, a postura que ensaia firmeza — e o pé que b**e no chão duas vezes, rápido, quando o assunto muda. Nervosismo. Medo. Culpa? Não importa o rótulo agora. Importa a reação. Eu caminho por entre as sombras que ninguém nota, e cada passo meu conta uma história que eles fingem não saber que estou contando. Tenho o mapa do prédio na cabeça, as rotas de saída, os pontos cegos das câmeras. Não porque precise fugir. Mas porque conhecer os pontos cegos ensina onde as pessoas se sentem seguras para serem verdadeiras. Ao longe, escuto um corte abrupto de conversa quando um terceiro se aproxima. E então o teatro recomeça: “Sinto muito”, “Força”, “Estamos juntos”. Palavras macias de gente que faria um leilão do próprio aliado se o lance fosse bom o suficiente. Eu sei reconhecer falsidade polida de longe. E sei quanto custa cortá-la pela raiz. Segunda-feira. Eu vou surpreender a todos assumindo a presidência. Quero ver as costas tentando se esconder. Mas de mim, ninguém se esconde. Ninguém. Penso no conselho. Tenho cada cadeira desenhada na mente: quem deve a quem, quem suporta quem, quem troca favores por silêncio. Penso nos acionistas externos — os que surgem como salvadores quando, no fundo, querem apenas o cofre aberto. Penso nos parceiros estratégicos, nas empresas satélite, nos contratos que atravessam fronteiras. Penso, sobretudo, nas mãos invisíveis que apertam pescoços com luvas de veludo. Haverá quem me chame de frio. Haverá quem me chame de cruel. Que chamem o que quiserem. O que ninguém chamará é ingênuo. Perdi o direito ao conforto da ingenuidade há muito tempo. O mundo aprendeu a me ver como um rumor. Deixei assim. O rumor é arma melhor que qualquer patente: ninguém sabe ao certo o que você é capaz de fazer — e por isso, teme o que você pode fazer. Me aproximo do bar discreto no canto do salão. Não bebo. A taça nas mãos dos outros costuma soltar a língua; a minha sobriedade guarda o fio da lâmina. Um garçom me oferece algo — recuso com um gesto curto. Ele se afasta, sem me reconhecer, e isso me serve bem. Invisibilidade é um terno sob medida para quem pretende agir sem ser interrompido. A memória me puxa para a mesma promessa que me trouxe até aqui: reconstruir e purgar. Não apenas manter o que foi erguido, mas limpar o que foi contaminado. O nome Cassani não pode ser moeda em mercado sujo. Não enquanto eu estiver respirando. Há quem se beneficie do caos, há quem lucre com a dúvida. A dúvida acaba segunda-feira. Vejo um corte de cena: três executivos mudam de assunto quando um quarto se aproxima. Sorriso automático, frase ritmada, palmadinhas no braço — tudo aprendido em manual de etiqueta corporativa. O quarto vai embora, e os três voltam a cochichar. Um deles lança um olhar de canto que varre a sala, como quem caça um fantasma. Aqui estou. As luzes, frias. O chão, impecável. O silêncio, pesado. E eu, inteiro. Reviso mentalmente a segunda-feira: — Chegada sem aviso. — Porta da frente. — Conselho reunido. — Documentos preparados. — Três demissões certas. — Duas convocações imediatas. — Um anúncio claro: o jogo mudou. E depois? Depois, cada nome que me observa de longe hoje vai conhecer a diferença entre lealdade e oportunismo. Entre erro e traição. Entre fidelidade e medo. Não há espaço para confusão de termos quando a sobrevivência de um império está em jogo. Avalio as minhas mãos. São firmes, limpas. Não foram feitas para consolar. Foram feitas para construir e esmagar. Construir o que é nosso. Esmagar o que ameaça. Eu não vou chorar. Hoje, não. Quem sabe, depois que pisar na cabeça de todos, eu volte aqui e chore. Talvez eu permita a mim mesmo esse luxo quando tudo estiver no lugar certo, quando cada fenda tiver sido selada, quando os oportunistas tiverem sido varridos. Mas hoje… hoje eu só quero vingança. E todos vão pagar. No instante em que me preparo para sair, um dos executivos ergue os olhos, inquieto, como se tivesse sentido minha presença. O olhar varre as sombras, para bem perto de onde estou. Um arrepio atravessa a sala. E então eu percebo: talvez não seja o único caçador aqui dentro. Segunda-feira não vai ser apenas o meu ataque. Vai ser o começo de uma guerra.