— Precisamos voltar ao posto de saúde.
— Não precisa, Isa… Sera encolheu os ombros, com um olhar resignado. — É só uma gripe. Logo vai passar. — Não está passando. E eu já não posso esperar mais. Com um olhar rápido, examinei a carteira: vi quatro notas amassadas, além de moedas soltas no forro. O boleto da conta de luz estava ali, também, com a frase “última chance” sublinhada em vermelho. O armário, quase vazio, e a geladeira que só refletia eco, deixaram claro que a situação não estava boa. — Escuta, faz assim. respirei fundo, decidida. — Hoje você vai ficar em casa. Não suba escadas, não desça, não saia. Qualquer sinal de tontura, me liga. — Mas você vai pra onde? perguntou Sera, com uma expressão preocupada. — Vou atrás de emprego. Ela abriu a boca como se fosse dizer “descanse”, mas engoliu as palavras. Sabia que, na situação em que estávamos, descansar era um luxo que não podíamos nos permitir. Deixei um copo de água e o oxímetro na mesa de centro. — Se sua saturação cair abaixo de 95, me liga. Se sentir falta de ar, me liga. Se começar a sentir tontura, me liga. — Tá bom, mãe Isa.ela soltou uma risadinha, tentando aliviar o ar pesado que pairava. — Engraçadinha… beijei sua testa carinhosamente. — E não esquece de trancar a porta. Asfalto, currículo e coragem Na lan house da esquina, imprimi duas cópias do currículo por três reais. A foto 3x4 era antiga, com meu cabelo preso. No currículo, escrevi: “Experiência: caixa, vendedora, cozinha de bar”. Saí com a pastinha azul em mãos e a coragem que consegui reunir. 1) Supermercado do bairro. — Vim aqui pra saber se abriu vaga. O gerente, com a barriga sobrando sobre o cinto, nem se deu ao trabalho de disfarçar. — Corte de pessoal, Isa. Você sabe como é. Se aparecer uma vaga horista, te ligo. E era claro que ele não ia ligar. 2) Padaria “Pão & Arte”. — Tem vaga para balconista? — Só sem registro. A dona sequer levantou os olhos da calculadora. — 1.200 reais, sem vale, escala aos domingos. Fiz as contas rapidamente na mente. Remédios custavam mais que isso. Agradeci e sai. 3) Loja de roupas. — Deixe seu currículo. A atendente sorriu, mas seus olhos estavam vazios. — A gerente vai avaliar. Atrás do balcão, dois homens me avaliavam de cima a baixo. Um deles assobiou baixinho. Larguei o currículo e contive o impulso de mandá-los para bem longe. 4) Depósito de bebidas. — Você carrega peso? — Sim, eu carrego. — Aqui não é lugar pra moça fina. Riram. — Aparece no sábado à noite que a gente vê o que pode fazer. “Ver o que dá” cheirava a encrenca. Saí sem olhar para trás. O sol estava escaldante, refletindo no asfalto, e o suor escorria pela minha nuca. Meu tênis estava quase no fim da vida. A cada vitrine que passava, via meu reflexo, alguém sem tempo para se preocupar com a aparência: cabelo preso em um rabo de cavalo, calças surradas e uma camiseta sem graça. Apesar disso, os olhares continuavam vindo: um carro diminuía a velocidade, uma moto passava devagar demais, e um vendedor se aproximava de forma excessivamente amigável. O mundo tem um jeito especial de perceber uma mulher cansada. Ao passar pela praça, dois rapazes no banco dividiram a atenção entre as latinhas de cerveja e minhas pernas. — Sorriso não custa nada, princesa. disse um deles. — E respeito também. respondi sem desacelerar. — Foguete! riram. Eu segui em frente. Portas que se abrem tortas 5) Restaurante self-service. O gerente analisou meu currículo, coçou o queixo pensativo. — Preciso de ajudante de cozinha. Turno da meia-noite. — Noturno? — Exatamente. 1.400, mais a refeição. Pensei no elevador sem porteiro, na Sera sozinha, subindo e descendo escadas, na tosse que não cedia. — Agradeço, mas não posso aceitar agora. 6) Telemarketing. O ambiente era apertado, com trinta cadeiras lotadas e o ar-condicionado a apenas 17 graus, enquanto alguém tossia incessantemente. — A meta é de 80 ligações diárias. O salário é mínimo, mais uma comissão se completar a meta. “Se completar” é uma esperteza. Peguei o folheto e fui embora. 7) Farmácia local. — Não temos vaga no momento, mas sua experiência pode ajudar. Deixe seu contato. O balconista, com o jaleco aberto e um dente de ouro, me ofereceu “um café após o expediente para conversarmos melhor”. — Conversa melhor acontece aqui no balcão, com contrato. sorri de forma seca. — Se quiser, liga. Ele não aprovou meu tom, e eu também não gostei do jeito dele. Enquanto caminhava, meu celular vibrou. “Sera”. Atendi na hora. — Oxi tá em 96, — ela disse com a voz tranquila. — Mas subi da sala pro quarto e baixou pra 93. Já voltou ao normal. — Senta aí. Respira pelo nariz, solta pela boca. Bebe água. — Estou bem. Apenas… cansada. — Volto já. Desliguei e me encostei na sombra de uma marquise. Meu peito apertou, não por cansaço, mas por raiva. Raiva do médico que tratava a gripe como se fosse uma simples indigestão, do gerente que não se importava, e do salário que não nos dava a mínima chance. A porta que ninguém quer abrir 8) Bar “Estação 12”. O tratamento de sempre: “sem registro, apenas gorjeta, uniforme curto”. — Garçonete rende bem se souber sorrir. disse o dono, me olhando uma vez para o rosto e quatro vezes para o corpo. — Eu sei servir sem confundir simpatia com convite. Ele soltou uma risada, mostrando os dentes amarelados. — Aqui, todo mundo confunde, princesa. Saí do bar com vontade de jogar a pastinha no lixo, mas acabei guardando. Quem passa fome não tem o luxo de desperdiçar papel nem orgulho — apenas escolhe onde sofrer. Bati em mais duas portas. Nada.