capítulo 1

**FLASHBACK — Domingo, 16h42**

O calor escaldante de domingo invadia o carro através das janelas abertas, trazendo com ele um misto de odores que remetiam ao asfalto aquecido, gasolina e aquele protetor solar de marca duvidosa. O banco traseiro rangia levemente ao eu me ajeitar ao lado de Seraphina. Na frente, meu pai, Roberto, dirigia com uma calma que só ele tinha, os dedos batucando no volante em sincronia com a música suave que ecoava pelo rádio. Enquanto isso, minha mãe, Camila, estava ocupada brincando com os cabelos e ajustando o cinto de segurança até ouvir o famoso clique.

— Checa o cinto da sua irmã, Isa. meu pai pediu, sem desviar os olhos da estrada.

— Está travado. respondi, puxando a fivela até sentir que estava firme e seguro.

Seraphina soltou uma risadinha suave, apoiando a cabeça no vidro da janela. O sol refletido tornava seus olhos parecidos com duas bolinhas de mel, brilhando intensamente sob a luz.

— Olha aquela nuvem! ela exclamou, apontando com o dedo pequeno e ágil. Ela parece um coelho.

Meu pai, sem tirar os olhos da estrada, soltou um sorriso que se podia ouvir na sua voz. Minha mãe, com um movimento sutil, virou a cabeça apenas um pouquinho para trás, lançando um olhar que parecia pesar sobre nós, mas ao mesmo tempo trazia um sentimento de proteção.

— Fica de olho nela, Isa. ela reiterou, com um tom maternal.

A rua era familiar: uma pista dupla, um canteiro baixo à disposição e três sinais antes de chegarmos ao trevo. O som dos pneus cantando ao fazer uma curva me fez sentir um frio na barriga quando meu pai freou bruscamente para evitar um buraco. O carro deu uma leve balançada, mas conseguiu se manter na trajetória. No fundo, o cheiro de talco que exalava da minha mãe se misturava com o odor forte do banco que estava quente pelo sol.

A frente, o semáforo piscava em amarelo, e quase automaticamente, meu pai reduziu a velocidade. Eu olhei para o outro lado do cruzamento, onde um caminhão caçamba descia a toda velocidade, parecendo desencadeado pelo destino. O sinal para ele estava vermelho. Ele deveria parar. Mas não parou. O motorista, um homem com um boné suado na cabeça, parecia imerso em algo no celular, alheio a tudo ao seu redor.

— Pai. minha voz saiu quase como um sussurro, mas com uma urgência contida.

— Tô vendo. meu pai respondeu, mantendo a calma, mas a tensão era palpável no ar.

O carro engasgou. O motor deu um soluço, como se o coração do veículo tivesse perdido o ritmo. Meu pai xingou baixinho, girou novamente a chave na ignição. O ponteiro do painel despencou, depois voltou a subir lentamente.

— Droga... ele resmungou, mantendo firme o controle do volante.

Um caminhão caçamba descia, em alta velocidade, pela lateral direita da estrada. O sinal estava vermelho para ele, mas o motorista, distraído com o celular que repousava em seu colo, não percebeu o perigo que se avolumava à sua frente.

A atmosfera tornou-se tensa em um instante.

— Segura! meu pai gritou desesperado, tentando sair, mais infelizmente não deu tempo.

O barulho da colisão foi um estrondo ensurdecedor. O caminhão atingiu a frente do nosso carro, esmagando o lado esquerdo com força brutal. O som do metal se dobrando era agoniante, e o painel avançou, quase se infiltrando no espaço do motorista. O carro inteiro vibrou como um instrumento desafinado.

De repente, o airbag se ativou com um estalo seco. O pó se espalhou pelo ar, um cheiro ácido e sufocante invadiu nosso espaço. O corpo do meu pai foi jogado contra os airbags, enquanto sua cabeça colidia com o volante. Sangue começou a escorrer de sua sobrancelha. Ele parecia desmaiar na mesma fração de segundo.

— Roberto! minha mãe gritou, mas logo sua voz se afogou em um grito de dor.

O painel do carro prensava a perna dela, e a tíbia estava aprisionada sob a lataria amassada. Ela se esticou, lutando para se soltar, mas a dor a fez gemer profundamente, mordendo os dentes para conter o sofrimento. Seu braço estava arranhado pelo impacto do airbag, e pequenos filetes de sangue escorriam por sua pele.

Atrás, eu e minha irmã Seraphina só não fomos arremessados para frente porque os cintos de segurança seguravam nossos corpos. No entanto, senti a pressão deles apertar demais, esmagando minhas costelas. Minha testa bateu com força no encosto do banco da frente, abrindo um corte. O sangue quente escorreu pela lateral da minha sobrancelha.

Do lado de Seraphina, o vidro estourou em mil pedaços. Estilhaços afiados se cravaram em seu braço, e ela começava a sangrar, mas os ferimentos pareciam superficiais. Ela chorava baixinho, soluçando, lutando para respirar. Seu rosto estava pálido, tingido de medo.

A buzina do carro prendeu-se em um grito agonizante, sem parar. O rádio estava mudo, e o motor emitia um som estranho, um ronco sufocado que parecia prenunciar algo terrível. E então, a fumaça começou a se espalhar, carregando um cheiro forte de gasolina misturado ao plástico queimando.

Meu coração disparou.

— Isa! a voz da minha mãe cortou toda a confusão. — Tira a sua irmã! Agora!

— Não! lágrimas ardiam em meus olhos. — Eu não vou te deixar, mãe!

Ela me olhou de forma intensa. Seu rosto estava pálido, mas seus olhos mostravam firmeza, determinação.

— Isabela! Escuta o que estou dizendo. Cuide dela. Agora.

— Eu não posso te deixar! gritei, tentando soltar o cinto e puxar o banco para libertá-la. — Eu vou te tirar daqui!

— Não há tempo! ela gritou, a voz embargada pela dor. — É uma ordem, Isa! Leva a sua irmã!

O carro estava chiando, e faíscas começaram a saltar de dentro do capô. A fumaça começou a se tornar espessa, enquanto o cheiro de combustível se intensificava, tornando cada vez mais difícil respirar.

Com as mãos trêmulas, soltei meu cinto. Girei a fivela da Seraphina, mas emperrou. Forcei o botão novamente até ouvir o “clac”. Ela deslizou pelo banco, chorando:

— Não, Isa! Não deixa a mãe!

— Vamos! puxei rapidamente pelos ombros, quase arrastando-a, sentindo seu braço arranhar nos cacos de vidro.

O grito da minha mãe ecoou atrás de nós, repleto de dor e desespero, mas firme e cheio de determinação:

— Vai, Isa! Agora!

Meu coração parecia se partir em mil pedaços. As pernas pesavam, mas eu puxei minha irmã para fora. A porta se abriu com um tranco violento ao que eu empurrei. A luz do sol entrou como uma rajada, e o som da rua se fez presente: gente gritando, pneus freando, buzinas tocando freneticamente.

Arrastei Seraphina até o canteiro, deitando sua cabeça sobre meu casaco. Seu corpo tremia intensamente, e o ritmo da sua respiração estava acelerado demais.

Atrás de nós, o carro fazia barulhos pequenos, mas cada um deles soava como uma sentença de morte: tic-tic-tic. Faíscas se intensificaram. O fogo começou a brotar no motor. Primeiro de forma tímida, depois se espalhando rapidamente, lambendo o capô succintamente.

— Isa… Seraphina soluçava, segurando firme meu braço. — Não volta, por favor…

Meus olhos se encheram de lágrimas. Eu não queria obediência. Desejava voltar, arrancar minha mãe e meu pai daquele inferno, com toda a força, fé e um milagre.

Mas o olhar dela ainda estava lá, atravessando a fumaça. Firme. Com um comando silencioso.

Cuide de sua irmã.

E então aconteceu.

Um estalo. Um sopro.

O fogo encontrou o combustível.

A frente do carro explodiu em uma labareda de chamas. O calor bateu em mim como um soco. A onda de pressão me jogou no chão, protegendo Seraphina com meu corpo. O barulho foi ensurdecedor, seguido pelo crepitar das chamas que consumiam tudo ao redor.

O grito da minha mãe se perdeu entre as chamas.

Chorei em silêncio, abraçada à minha irmã. O mundo estava desmoronando, e a única coisa que restava era uma ordem gravada em meu peito, como ferro em brasa:

“Cuida dela, Isa.”

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