capítulo 2

**FLASHBACK — Domingo (continuação)**

O fogo consumiu o carro rapidamente, como se estivesse ansioso por aquele momento. As chamas invadiram o painel, subiram pela cadeira da frente e expeliram fumaça preta através do para-brisa estilhaçado. O calor era insuportável, um vento abrasador golpeando meu rosto e secando minha garganta.

— Mãe! meu grito se perdeu no meio do crackle das chamas. — Pai!

Tentei correr de volta, mas uma mão forte agarrou meu braço. Virei-me instintivamente para me soltar. Era um homem com um colete de bombeiro, o rosto já coberto pela máscara.

— Não! ele gritou. — Não chega perto, vai explodir de novo!

— Eu preciso da minha mãe! berrei, arrastando os pés no chão, tentando me soltar. — Eles estão lá! Eu preciso!

Outro bombeiro se aproximou, segurando meu outro braço. Eu esperneei, chutei e gritei até minha garganta arder.

— Me solta! É minha mãe! É meu pai!

Eles não soltaram. Um deles segurava firme, mas o olhar dele era pesado, carregado de uma tristeza silenciosa que intensificou meu desespero: ele já sabia do que estava por vir.

O som das sirenes do Samu cortou o ar, e uma ambulância parou ao lado. As portas traseiras se abriram, e médicos e enfermeiros desceram correndo. Um deles veio em minha direção, enquanto outro se dirigiu diretamente até Seraphina, que jazia caída no canteiro.

— Criança! uma médica gritou. — Saturação! Máscara já!

Sera chorava inconsolavelmente, seu corpo todo tremendo. O sangue escorria de um arranhão no braço, a blusa rasgada nos ombros. Ela estendeu os braços para mim.

— Isa! soluçava. — Cadê a mãe? Cadê o pai? Não deixa eles!

Tentei me soltar novamente, me jogar em direção ao carro.

— Eu vou buscar! Eu prometi que ia buscar ela!

Um médico me bloqueou, segurando meus ombros.

— Você não pode, filha. Olha pra mim. Você não pode entrar lá!

O fogo estalava alto, e o cheiro de gasolina queimando era sufocante, misturado ao plástico derretido. Os bombeiros puxaram mangueiras, e a espuma branca começou a cobrir as chamas, mas já era tarde demais.

Meu coração batia em meu pescoço, como se estivesse prestes a explodir junto com o carro. Eu gritava até que minha voz desaparecesse.

— Minha mãe! Meu pai!

A médica que atendia Sera olhou para mim e falou baixo, mas firme, como se tentasse me manter ancorada na realidade:

— Cuida dela, Isa. Fica com a tua irmã.

A frase me atravessou. Era a mesma que minha mãe tinha gritado segundos antes.

Eu caí de joelhos na grama, as mãos no rosto coberto de sangue e fuligem. O choro veio seco, dolorido, como se estivesse me rasgando por dentro.

Atrás de mim, Sera continuava a chorar alto, soluçando, com a máscara de oxigênio já colocada em seu rosto.

— Eu quero a mãe… eu quero o pai… repetia sem parar.

Os médicos a deitaram em uma maca improvisada, ajustando o oxímetro em seu dedo. O visor mostrava números piscando, emitindo um apito constante.

— Noventa e um… estabiliza. Vamos, respira comigo, Seraphina. Isso, devagar…

Eu não conseguia desvincular meu olhar do carro, mesmo quando as chamas estavam quase dominadas pela espuma. O metal retorcido, o vidro derretido, o cheiro de borracha queimada. A imagem da porta dianteira, onde minha mãe havia olhado para mim pela última vez.

— Não… sussurrei, quase sem voz. — Não, não, não.

Um policial se aproximou, agachou-se até ficar na minha altura e colocou a mão no meu ombro.

— Filha, precisamos levar vocês agora. Seus pais… não tem mais como.

A frase me cortou como uma lâmina. Balancei a cabeça, negando.

— Eles vão sair! Eles vão! minha voz saiu carregada de desespero, quase infantil. — Eles não morreram!

Sera soluçava incontrolavelmente, seu corpo pequeno tremendo na maca.

— Isa… Isa, fala pra eles que não morreram…

Corri até a maca, segurando a mão dela, fria e tremendo de medo.

— Eu tô aqui, Sera. Eu tô aqui.

Ela se agarrava aos meus dedos, o rosto molhado de lágrimas, a respiração falhando apesar da máscara.

E ali estava eu, tentando segurar o mundo que havia desmoronado.

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**O transporte**

Me colocaram em uma segunda maca, mesmo eu insistindo que não era necessário. O corte na minha testa ardia, o sangue escorria pela lateral do meu rosto, misturando-se com a fuligem. A cada curva, eu virava o pescoço tentando ver o carro pela última vez.

Dentro da ambulância, o barulho era ensurdecedor: apitos, oxigênio, o rádio chiando. Sera estava deitada ao meu lado, os olhos fixos no teto, repetindo baixinho:

— Mãe vai vir… pai vai vir…

Segurando a mão dela com tanta força que doeu, não tive coragem de revelar a verdade.

A médica que me examinava limpava o corte na minha testa e disse:

— Você é forte. O tom parecia uma mentira, pois eu não me sentia forte. Eu estava quebrada.

Fechei os olhos e a última imagem que vi antes de perder o fôlego foi o olhar da minha mãe, preso no carro, ordenando:

“Leva sua irmã.”

E foi isso que eu fiz.

O corredor do hospital exalava um forte odor de desinfetante e sangue. O som era incessante: macas se movendo, o rádio de plantão apitando e pessoas gritando nomes de medicamentos. A ambulância parou abruptamente. Quando abriram a porta traseira, o ambiente se transformou em um caos organizado.

— Criança com sangramento superficial, saturação baixa, oxigênio em uso! gritou a médica.

— Jovem com corte na região frontal, consciente, pressão oscilando! acrescentou outro.

Fui levada para dentro junto com Sera. As mãos dela buscaram as minhas, apesar da tentativa dos enfermeiros de ajustá-la na maca. Segurei firme, mesmo quando um deles disse: “Solta para a gente trabalhar”. Eu não soltei.

— Isa… ela murmurava, com a máscara cobrindo o rosto e os olhos arregalados. — Cadê a mãe? Cadê o pai?

Minha garganta se fechou. Engoli em seco, ainda sentindo o gosto de ferro na boca. O corte na testa ardia enquanto a enfermeira limpava com gaze.

— Eles vêm… menti, a voz tremendo. — Calma, Sera, eles vêm.

Ela piscava rapidamente, com lágrimas escorrendo pelos cantos dos olhos. Apenas dez anos. Uma criança se agarrando à última promessa que eu não podia cumprir.

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O anúncio

Dois médicos entraram juntos. Um deles me olhou diretamente antes de voltar a atenção aos papéis na prancheta. A voz dele foi baixa e seca, como quem não queria ter que dizer aquilo.

— Menina, seu pai faleceu no local. Não resistiu ao impacto.

A palavra faleceu atravessou meu peito como uma faca. Abri a boca, mas não consegui emitir som algum, apenas o ruído da minha respiração acelerada.

— E a minha mãe? minha voz saiu quase como um sussurro.

O médico desviou o olhar. Contemplou o colega, que respirou fundo antes de falar:

— Sua mãe estava presa nas ferragens...

Sinto muito.

Não chorei imediatamente. Foi como se o mundo tivesse desligado o som por um instante. Olhei para Sera. Ela ainda me fitava, esperando a resposta, aguardando ouvir que a mãe estava na sala ao lado, prestes a chegar com a perna engessada, reclamando, sorrindo.

Eu não consegui. A mentira entalou na garganta. As lágrimas vieram de uma vez, grossas e quentes. Segurei sua mão com mais firmeza.

— Isa… a voz dela era um sussurro infantil. — Eles não vêm mais, né?

Meu coração se partiu. Balancei a cabeça lentamente.

— Não vêm, Sera. Agora, somos só nós duas.

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A angústia

Ela começou a chorar intensamente, seu corpo todo tremendo na maca. Tentou arrancar a máscara de oxigênio, gritando entre soluços:

— Eu quero a mãe! Eu quero o pai! Eu não quero ficar sozinha!

Segurei seus braços, tentando acalmá-la. As enfermeiras se aproximaram, ajustaram a máscara novamente, mas nada parecia funcionar. O choro dela era um desespero puro, uma criança vendo tudo desmoronar à sua volta.

— Eu estou aqui, maninha disse, esforçando-me para controlar minha própria voz. — Você não está sozinha. Nunca estará sozinha enquanto eu respirar.

Ela soluçava, repetindo sem parar:

— Eu não quero, Isa… eu não quero…

As lágrimas dela molharam minha mão. Meu corpo inteiro doía: o corte na testa ardia, as costelas latejavam do impacto, mas a dor maior era invisível. Era a certeza de que, a partir daquele momento, o mundo havia mudado completamente.

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O peso

Uma assistente social entrou na sala. Uma mulher de cabelos presos, com um crachá balançando no pescoço. Sua voz era suave, mas firme.

— Isabela, você tem alguém da família para contatar? Algum parente próximo?

Pensei rapidamente. Tias distantes, uma avó que não se falava com minha mãe há anos. Mas ninguém que pudesse chegar ali naquele momento. Engoli o choro e balancei a cabeça.

— Não. Só… só eu.

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