capítulo 4

### A PRIMEIRA CONSULTA (o erro)

Acordei a Sera bem cedo, preparando um café fraco e aquecendo um pão na chapa. Ela fez uma tentativa de mostrar normalidade, mas logo a tosse denunciou a farsa no segundo gole.

— Coloque a blusa. O posto abre às sete.

— Isa, isso é um exagero…

— Exagero é te ver ofegante lavando a louça. Vamos.

Na triagem: filas, senhas, papel amassado

Chegamos ao posto de saúde com o céu ainda em um tom de azul-claro e a fila já se estendia torta pela calçada. Uma criança chorava, um senhor estava envolvido em uma discussão sobre a senha, e um cartaz de “Campanha da Gripe” pendia torto, segurado por fita crepe.

Durante a triagem, a técnica mostrou-se precisa e automática:

Pressão arterial: 100/65

Frequência cardíaca: 104 (ela comentou “ansiedade”, sem desviar o olhar)

Saturação de oxigênio: 97% em ar ambiente

Temperatura: 36,6°C

Queixa: “tosse seca, cansaço em esforços leves, tontura esporádica”

— Você tem alguma alergia?

— Não.

— Está com febre?

— Não.

— Sente dor no peito?

— Apenas um aperto quando falta ar.

Ela carimbou o papel e fez um ‘X’ em “urgente? não”. Eu guardei a pontada de preocupação que se formou no meu estômago.

**Consultório 2: “provavelmente é gripe”**

Entramos no consultório. O médico era novo, usando um jaleco repleto de canetas. Ele abriu o sistema e clicou rapidamente, quase apressadamente.

— Oi, Seraphina. Há quanto tempo você está com tosse?

— Umas… duas semanas? ela olhou para mim em busca de confirmação.

— Três. corrigi, sem hesitar.

— Tem febre?

— Não.

— E dor de garganta? Nariz entupido?

— Às vezes arde, mas não é sempre.

Ele se aproximou com o estetoscópio e auscultou sua frente e costas, pedindo que ela inspirasse fundo.

— Mais… profundo...

Ela tentou, mas tossiu no meio da inspiração. Ele assentiu, como se já tivesse fechado o diagnóstico.

— Não estou ouvindo chiado. Está “limpo”. É bem típico de gripe ou virose. Mudanças de clima, poeira da escola, ar-condicionado do ônibus… acontece.

— Mas ela cansa ao subir pela escada . eu disse de uma vez. — E ontem, ela teve falta de ar enquanto lavava a louça.

Ele olhou para a tela do computador, sem nos encarar.

— As viroses respiratórias podem causar esses sintomas. Elas irritam as vias aéreas e causam cansaço. Sem febre, sem secreção, sem saturação baixa… não há nada de grave aqui.

Ele começou a escrever na receita e leu em voz alta:

— Sintomáticos: antialérgico à noite, xarope para tosse, spray nasal por cinco dias, inalação se piorar. Beba muita água. Evite esforços. Se passar de 15 dias, retorne.

— E quanto aos exames? perguntei. — Raio-X, hemograma, algo assim.

— Não há necessidade no momento. Sem febre, sem crepitações, saturando bem… ele sorriu rapidamente, como alguém que passa apressado no corredor. — É um quadro de gripe prolongada. Acontece bastante. Fiquem tranquilas.

“Tranquila” era uma palavra que eu já não sabia mais usar.

Ele imprimiu um atestado de dois dias para a escola. Carimbou e, com um gesto gentil de “próximo”, abriu a porta.

**Farmácia e ar raso**

Na farmácia do posto, o antialérgico que estava na lista não estava disponível. Na drogaria da esquina, eles tinham, mas custava o dobro. Eu contei cédulas e moedas, usando o cartão de débito para completar o restante. Peguei tudo: xarope, spray, e uma pastilha que prometia “alívio” na caixa. Saí de lá com uma sacola leve e um bolso vazio.

— Viu? Sera disse, tentando me animar. — É gripe. Eu já tinha avisado.

Sorri de lado. Era um daqueles sorrisos que se aprende a fazer quando não se acredita, mas se precisa.

**Dois dias de “descanso”**

**Dia 1:** Um xarope doce que deixava a língua dormente, um spray que queimava no início e depois aliviava. A tosse deu uma trégua, aquelas duas horas maravilhosas em que quase acreditamos que tudo está bem. No final da tarde, ao subir dois lances da escada, ela se apoiou no corrimão.

— Só… um segundo.

Ficamos ali, como quem observa uma obra de arte que não existe, esperando que o ar voltasse.

**Dia 2:** Sem escola, assistindo a um filme bobinho, cobertas no sofá. A tosse reapareceu à noite, seca e insistente, com um relógio imaginário marcando intervalos que pareciam calculados para garantir que ninguém conseguisse dormir. Sentada, ela conseguia respirar melhor do que deitada. Eu ajeitei o travesseiro, preparei um chá e toquei suas costas.

— Desculpe por te dar trabalho . ela disse, em um sussurro.

— Você não dá trabalho. Você dá sentido respondi, sem pensar. Ela soltou uma risadinha pequena. Tossiu novamente.

**O detalhe que não combina com gripe**

No banho, percebi que o tórax dela estava subindo rápido demais, como se estivesse em busca de um ar extra entre um movimento e outro. Sem febre. Sem catarro. Sem nariz entupido. Sem nada que geralmente se associa à gripe. Apenas cansaço e falta de ar em atividades comuns.

Naquela noite, enquanto ela dormia sem se deitar completamente, procurei pelo som que o médico não conseguiu ouvir. Encostei meu ouvido nas costas dela, bem na base. Um ruído bem suave, um leve “crec”, como velcro abrindo à distância. Talvez eu tivesse imaginado. Ou talvez não.

Deitei-me ao lado dela e encarei o teto. O silêncio da madrugada amplifica qualquer ideia ruim. “Virose” é uma palavra elástica que o sistema de saúde usa quando não quer (ou não pode) investigar mais a fundo. Conheço esse truque; a vida me ensinou bem.

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