O Peso da Diferença

Os primeiros dias na Averly foram uma mistura de fascínio e desconforto. Tudo era tão perfeito, tão impecável, que às vezes eu me sentia um erro qualquer naquele lugar — um corpo estranho tentando se encaixar em um sistema feito para poucos.

Lara se tornou minha primeira e única amiga de verdade. Ela não parecia se importar com a diferença entre nós — pelo menos, não deixava transparecer. Almoçávamos juntas, ríamos de algumas aulas e até compartilhávamos anotações. Mas bastava uma conversa sobre viagens, festas ou carros para eu lembrar que existiam dois mundos separados por um muro invisível.

Naquela quarta-feira, Ms. Adriana anunciou um trabalho em grupo de Sociologia. Eu esperava ser sorteada com Lara, mas, por ironia, caí no grupo de Arthur Vilela e mais dois garotos que pareciam ter nascido dentro de uma bolha.

— Então, bolsista... — disse um deles, o Gabriel, assim que a professora saiu da sala. — Você pode ficar com a parte escrita. A gente cuida da apresentação.

— Claro — respondi, tentando manter o tom neutro.

Arthur o olhou de lado, como quem não aprovava o comentário, mas não disse nada.

Passei o resto da aula em silêncio, fingindo anotar, enquanto por dentro sentia um calor amargo subindo pelo peito. Não era apenas o jeito como ele tinha dito “bolsista”. Era o peso da palavra. Como se ela viesse sempre acompanhada de uma etiqueta que dizia: inferior.

No dia seguinte, fomos para a biblioteca — um lugar que parecia mais um santuário do conhecimento. Estantes altas, poltronas de couro e janelas enormes que deixavam o sol entrar em feixes perfeitos. Arthur já estava lá, concentrado em seu notebook, fazendo anotações com os olhos fixos na tela.

— Ei... — chamei, hesitante. — Eu trouxe o rascunho da introdução, quer dar uma olhada?

Ele levantou o olhar e sorriu de leve.

— Claro. — Pegou as folhas e começou a ler. — Isso está excelente, Isabela. Você escreve bem.

— Obrigada — respondi, surpresa.

— Não precisa agradecer. O mérito é seu. — Ele me olhou por um instante, direto, e eu percebi que não havia condescendência ali. Era genuíno.

Conversamos por alguns minutos sobre o tema — “Desigualdade e Mobilidade Social”. Irônico, não?

Enquanto eu falava, Arthur parecia realmente interessado. Havia algo curioso naquele garoto — o jeito tranquilo, o olhar atento, a ausência de arrogância. Mas, ao mesmo tempo, era evidente que ele vivia em outro universo.

— Você mora onde? — perguntou ele, casualmente.

— Em Brasilândia, não muito longe daqui. Fica perto. — respondi.

— Perto? — Ele franziu o cenho, confuso.

Sorri sem graça. — É... mais ou menos. Uma hora de distância se o trânsito ajudar.

— Uau... você vem todo dia?

— Venho.

Arthur ficou em silêncio por alguns segundos. Parecia processar o que para ele era algo impensável.

Naquele momento, percebi o abismo que separava nossas rotinas. Para mim, acordar às quatro da manhã era o preço do sonho. Para ele, era o privilégio de dormir até as seis sem se preocupar com nada.

Nos dias seguintes, a convivência nos trabalhos fez com que nossas conversas se tornassem mais naturais. Não éramos amigos, mas havia uma curiosa troca de respeito. Eu via em Arthur alguém que, apesar do sobrenome poderoso, parecia se incomodar com o pedestal onde o mundo o colocava.

Mas nem todos eram como ele.

Certo dia, no intervalo, entrei no banheiro e ouvi risadas abafadas. Duas meninas, que eu já tinha visto com Lara, falavam alto o suficiente para que eu escutasse.

— Dizem que a nova bolsista veio de um bairro perigoso.

— Sério? — respondeu a outra, rindo. — Devem ter colocado ela aqui só pra equilibrar as estatísticas da escola.

O riso delas ecoou. Eu respirei fundo, tentando não permitir que as lágrimas rolassem. Quando saí do banheiro, Arthur estava parado no corredor, olhando na minha direção. Nossos olhos se cruzaram e ele não desviou.

— Tá tudo bem? — perguntou, sério.

Assenti rapidamente, mesmo que tudo dentro de mim gritasse o contrário.

— Tá sim. — Forcei um sorriso.

Ele ficou me olhando por um instante, com uma expressão que misturava empatia e preocupação. Meu rosto inchado e os olhos vermelhos entregavam que eu acabara de chorar no banheiro.

Naquela noite, ao chegar em casa, o peso do dia caiu sobre mim.

Minha mãe preparava o jantar, e o cheiro do arroz com alho me envolveu como um abraço silencioso.

— Como foi o dia, filha? — perguntou ela, sem olhar.

— Normal. — respondi rápido demais.

Ela me olhou, desconfiada. — Tem certeza?

— Tenho, mãe. É só cansaço.

Mas a verdade era outra. A Averly me fazia sentir como se eu tivesse que provar o tempo todo que merecia existir naquele espaço. Que cada palavra, cada nota, cada gesto precisava ser perfeito.

Antes de dormir, abri o caderno e reli um trecho do texto do trabalho:

“A mobilidade social não é apenas uma questão de esforço individual, mas de oportunidades que nem todos têm acesso.”

Sorri com ironia. Eu vivia exatamente isso — um exemplo ambulante do tema.

Fechei o caderno, apaguei a luz e deitei. O teto do meu quarto parecia mais longe do que nunca. E, no silêncio da madrugada, uma única pergunta ecoava na minha mente:

Será que, para ser aceita, eu teria que fingir ser quem eu não sou?

Ou talvez... provar que quem eu sou já é o suficiente?

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