Dois dias se passaram. Minha rotina virou um ciclo entediante: acordo cedo, tomo café com Dona Helena, volto pro quarto, tomo um banho gelado, porque, claro, não alcanço a porcaria do chuveiro pra mudar pra água quente e depois passo o resto do dia deitada, assistindo televisão.
Não tenho dormido direito. Minhas olheiras estão tão fundas que pareço um panda. Não tenho cremes, nem pro rosto, nem pro corpo. Meus cabelos estão ressecados, já que o shampoo que tem aqui não serve pro meu tipo de fio. Tudo em mim parece estar murchando.
Depois do meu último surto de ansiedade, Wick me proibiu de assistir aos noticiários. Disse que era pra evitar outro ataque. E, embora eu saiba que ele estava tentando cuidar, me sinto ainda mais sufocada. Ele não me trata como prisioneira — me deixa andar livre pela casa —, mas isso só faz com que o peso da prisão mental que vivo fique ainda mais nítido. Hoje, Dona Helena me entregou um biquíni e sugeriu que eu fosse nadar, tomar um sol. O dia estava lindo, mas meu corpo não responde. Ficar na cama virou um refúgio silencioso.
Eu preciso saber da Ayla. Preciso saber se ela está viva. Preciso pedir perdão... por tudo. Isso é culpa minha.
Não vejo Wick desde o último episódio. Chuck, o irmão dele, disse que ele está resolvendo problemas na comunidade. Descobri que Wick é o chefão, e Chuck, seu braço direito. Era pra eu odiar os dois. Mas o mais estranho é que não sinto absolutamente nada. Nem raiva. Nem medo. Nem revolta. Só esse vazio.
As horas passam devagar. Sempre janto sozinha, no quarto. Dona Helena b**e pontualmente às 20h, entrega a comida e a porta é trancada por fora. Olho pro relógio da mesa de cabeceira: 19h30. Me levanto e vou até a varanda. Me sento no sofá-cama e observo as árvores. De manhã, os pássaros cantam; agora, o único som que escuto é o das cigarras.
É aí que sinto o cheiro. Um perfume amadeirado, forte, masculino. Instintivamente olho para a rede. Wick. Ele está ali, deitado. O cheiro dele... é diferente. Não é cheiro de suor ou sabonete barato. É algo mais limpo, quase refinado. Aquele tipo de perfume que gruda na memória. E agora, toda vez que senti-lo, vou lembrar dele. O que não é nada bom.
Me aproximo devagar. Ele parece estar dormindo. Está só de short de nylon. E é aí que me dou conta: nenhum bandido tem aquele corpo. Aquele abdômen não é de quem passa o dia correndo da polícia. É de quem passa horas na academia. Como alguém como ele... pode existir desse jeito?
Fui sequestrada para conhecer o homem mais bonito que já vi na vida. E isso é doentio. Preciso parar com esses pensamentos. Foco, Jade. Celular. Pai. Fuga.
Entro no quarto dele nas pontas dos pés. O ambiente tem o mesmo cheiro dele. A cama é king size, mas há apenas um travesseiro, ele dorme sozinho. A TV está ligada, no noticiário. Nada sobre mim ou Ayla. Frustrante.
Abro as gavetas da mesinha de cabeceira. Nada. Só correntes, relógios... até um pacote de biscoitos. Típico. Sigo até o closet. Gravatas? Camisinhas? Wick é um quebra-cabeça. E mesmo revirando tudo, não encontro nenhum celular.
Entro no banheiro. Idêntico ao meu, mas a banheira está cheia, com sais de banho. Um aroma suave. Pego um punhado e estou prestes a voltar quando...
— O que você pensa que está fazendo?
Congelo. A voz dele soa atrás de mim como um raio. O pânico me toma.
— Eu... eu queria tomar um banho de banheira — estendo a mão com os sais — e achei que você não se importaria. Não quis incomodar sua mãe...
Ele estreita os olhos, como se me enxergasse por dentro.
— E pedir pra minha mãe não te passou pela cabeça?
— Eu... não queria incomodar. — minha voz é quase um sussurro.
— Você está proibida de entrar no meu quarto. Principalmente se eu não estiver. Seja lá o que está procurando, não vai encontrar. Agora, volta pro seu quarto.
Deixo os sais sobre a pia e saio quase correndo. Sinto o olhar dele me queimar até que sumo do seu campo de visão.
Ao entrar no quarto, Dona Helena está colocando a janta sobre a cama.
— Onde você estava? Nem na varanda estava... — ela pergunta, preocupada. — Se meu filho te pega fora do...
Ela para. Não precisa terminar a frase. Sinto a presença atrás de mim antes mesmo de me virar.
— Esqueceu os sais — diz ele, colocando o frasco sobre a cama. — Mãe, providencie mais pra ela. Assim ela para de fuçar nas minhas coisas.
Me encara por um segundo antes de sair e trancar a porta da varanda.
Só então percebo que estava prendendo a respiração. Respiro fundo e me sento. A comida é estrogonofe. Sorriu sem querer.
— É minha comida favorita. A senhora sempre acerta.
Ela sorri, orgulhosa.
— Que bom. Tenho outra surpresa.
Sai e volta com um bolo.
— Eu ia fazer no seu aniversário, mas você estava tão triste... então esperei uns dias. Não queria deixar passar em branco. Uma menina tão nova não devia passar por isso. Sinto muito por não poder te tirar daqui.
Pego o bolo, parto um pedaço e ofereço a ela. Comemos em silêncio por alguns minutos. Então, pergunto:
— Se a senhora acha errado o que seus filhos fazem... por que aceita?
— Já tentei mudar eles. Já chorei, briguei. Mas são meus filhos. E são tudo o que tenho. Um dia, talvez, você entenda.
— Se eu ficar aqui, nunca vou ter filhos, Dona Helena. — minha voz falha. — Minha esperança... é que a senhora me ajude a fugir.
Ela desvia o olhar. Passa a mão nos meus cabelos com delicadeza.
— Mesmo que eu ajudasse, você não saberia descer. E, se soubesse, talvez não chegasse viva ao pé do morro. Agora todos sabem quem você é. Aqui, pelo menos, está segura. Eles não vão te machucar. — pausa, hesita — Eu não sei o plano do Samuel...
Me viro, surpresa.
— Quer dizer, do Wick... — ela se arrepende do deslize, mas continua — Só sei que ele não tem intenção de te matar.
— Talvez ele só queira mais dinheiro — olho ao redor. — Dinheiro parece não faltar por aqui.
Ela se levanta, leva o resto do bolo consigo. Antes de sair, para na porta.
— Sei que você tem todos os motivos do mundo pra não confiar em mim. Mas posso te pedir um favor?
Faço que sim com a cabeça.
— Não conte ao meu filho que revelei o nome verdadeiro dele. Não sei como ele reagiria.
— Pode ficar tranquila. Vou fingir que nunca ouvi.
Ela sorri, aliviada, e sai. Não ouço a porta ser trancada. Testo a maçaneta. Está aberta.
Volto pra cama. Não posso agir agora. Se ele deixou destrancado uma vez, pode fazer de novo. Tenho que ser paciente.
À meia-noite, ainda estou acordada. Deitada, de costas para a porta. O som da maçaneta gira devagar. Alguém abre, observa. Não entra. Fecha. Tranca.
Fiz certo em não tentar nada. Talvez... talvez ele esteja testando minha confiança. E talvez... eu esteja começando a querer que ele confie em mim.