Levanto na ponta do pé, pois ouço uma gritaria no andar de baixo, quando vou sair do quarto vejo um homem na sala de jogos, e antes que ele me veja, volto para o quarto mas deixo a porta entreaberta para tentar ouvir.
Não consigo identificar a voz, pois mesmo distante, a pessoa está gritando, então consigo ouvir em partes a conversa.
- Eu falei que não era para machucar nenhuma delas!
- Eu não machuquei ninguém, porra!
- A amiga levou um tiro, teve que sair carregada daqui
- Eu vi, e ela também, se eu não tivesse dado uma coronhada nela, iria ter chamado a atenção
- Não quero que chegue perto dela, ela precisa ficar viva.
- Não posso te prometer nada.
- O que você está fazendo? - Dou um salto por causa do susto da voz que vem de trás de mim.
- Nada, eu só estava tomando coragem para descer - respondo tentando disfarçar a mentira.
- Eu acho que você estava ouvindo a conversa dos senhores lá de baixo - ele vem chegando mais perto
- Não estava, eu estava na esperança da Dona Helena aparecer para que me levasse até a cozinha.
Ele estreita os olhos
- Minha mãe está na cozinha fazendo o famoso pão caseiro dela, pelo visto ela gostou de você.
- Ah, então você é o filho que mora na casa da piscina, posso saber o que está fazendo dentro do meu quarto?
- Eu vi você bisbilhotando enquanto eu estava jogando, e entrei pela porta da varanda para pegar você bem no ato.
Ele fala com uma voz grave, rindo ao ver que estou com vergonha por ter sido pega. Ele tem os olhos azuis igual do irmão, mas parece ser mais velho que ele. É mais alto, tem os cabelos mais escuros, e também é mais corpudo.
- Me desculpa - preciso me defender para o caso dele ir contar para o Wick o que eu estava fazendo.
- Fica tranquila, não vou contar para o Wick, e também não irei te fazer mal, mesmo se eu quisesse, estou proibido de tocar um dedo em você.
Fico tranquila em saber que ele e o irmão estão proibidos de me tocar, mas pelo o que entendi, eles trabalham para uma outra pessoa, e essa o pagou para me sequestrar. Mas quem? Quem gostaria de me fazer mal?
- Vou deixar você se trocar para ir tomar café, providenciamos algumas roupas, está na sacola. - Ele aponta para a sacola que está em cima da escrivaninha.
Ele sai e assim que vou fechar a porta Wick a segura
- Pelo jeito já conheceu o meu irmão.
- Já sim, com quem você estava conversando? - vou direto ao ponto
- Não é da sua conta - ele sobe o tom de voz
- É claro que é, estavam falando de mim, então sim, é da minha conta - falo praticamente gritando.
- A partir de agora, toda vez que tivermos visita, você ficará trancada aqui, para parar de bisbilhotar os assuntos alheios, entendeu ? - ele toca em meu braço, mas não aperta
Esse simples toque faz meu corpo estremecer.
- Tudo bem, será que poderia sair do meu quarto para que eu possa tomar um banho e trocar de roupa? – Ele assente
Fecho a porta e me sinto ofegante. Começo a respirar mais rápido e mais forte, estou começando com uma crise de ansiedade. Sento no chão e coloco a mão no peito. Lembro da minha festa de 15 anos, quando meu pai não pode comparecer devido a uma operação em uma comunidade. Quando a crise começou, Murilo me deu a mão, e me puxou para o seu peito, mandou eu contar de um a dez, até eu me acalmar. E ficou repetindo várias e várias vezes “estou aqui, não vou a lugar nenhum”. E assim eu fui me acalmando, ele secava de leve as minhas lágrimas para que não borrasse a minha maquiagem. “eu te amo, maninha”.
Lembrar do meu irmão faz com que minha crise atual diminua, conto até dez. Queria entender o que o fez mudar tanto, o irmão carinhoso sumiu, e agora é aquele mulherengo grosso.
- Você deveria estar aqui - respiro fundo - me prometeu que não ia a lugar nenhum
Respiro fundo novamente.
Depois de 10 minutos a crise passa, levanto do chão, escovo os meus dentes e jogo uma água no corpo. Me olho no espelho e vejo como minhas olheiras estão pretas e aparentes. Meu coração dói, ao me ver naquele estado. Como eu queria ter tomado outra decisão. Porque aceitei o convite de Anne, era para eu ter seguido meus instintos, era para eu ter seguido as regras do meu pai, mas agora é tarde, tarde demais para que eu me arrependa da escolha que eu fiz.
***
Procuro pela cozinha e vejo que até porão a casa tem, não me atrevo a descer, pois estou com sorte de ainda estar viva. Sinto cheiro de pão e vou andando atrás de onde esse maravilhoso cheiro vem. Entro na cozinha, que é toda em inox, com preto. Sempre sonhei em ter minha casa, e se essa fosse minha cozinha, eu estaria realizada.
Dona Helena está de costas coando o café, e não percebe minha presença. Da cozinha consigo ver melhor a parte externa da casa. A piscina é grande, e toda de azulejo, mas ao invés de ser azul, é verde. Não acho bonito, mas me leva a crer, que é para ser camuflada junto às árvores. O portão da casa é preto e alto, nem se eu quisesse conseguiria escalá-lo e pulá-lo. Encostado nele há dois homens armados.
Volto a minha atenção para Dona Helena que ainda não percebeu minha presença.
- Bom dia, Dona Helena. - Ela olha para trás e dá um sorriso
- Bom dia, menina linda. Conseguiu dormir?
- Consegui sim, depois de muito custo. - Dou um sorriso torto, mas agradeço pela preocupação dela.
- Toma, come um pedaço - ela me entrega um pedaço de pão - tem suco de abacaxi na geladeira, eu acabei de fazer.
- Suco de abacaxi é o meu favorito - digo a ela, que está de costas colocando adoçante em sua caneca de café.
- Jura, ai que bom, então acertei no sabor. - eu preciso perguntar a ela quem esteve aqui, mas tenho medo dela contar ao filho e ele acabar fazendo algo contra mim. Mas mesmo assim arrisco - Dona Helena, quem esteve aqui hoje? – ela me olha surpresa, talvez pela minha audácia de ter perguntado tão diretamente.
- Desculpa, minha filha, mas eu não vi, fiquei na cozinha o tempo todo, e também não me meto nos assuntos dos meus filhos.
- Tudo bem, eu entendo, é que eu precisava tentar - começo a chorar - eu só quero ir para casa, pede a ele para me soltar, por favor, eu imploro.
- Eu não posso, me perdoa - ela enxuga minhas lágrimas - eu não sabia que meu filho teria coragem de fazer isso, ele nunca fez isso.
- Mas fez agora, e logo comigo - coloco as mãos no rosto, para que ela não me veja chorar.
Ela tira as minhas mãos do meu rosto, me levanta da cadeira e me leva até a sala, me sento no sofá e ela se senta ao meu lado.
- Como o meu filho te encontrou?
Conto toda história à ela, desde o hotel até o baile. Ela me diz que não sabia que tinha tido operação, que sempre avisam a ela, mas dessa vez não comunicaram nada, nem seus filhos. Falo que vi minha amiga ser carregada por um homem do bope e que gritei por ela, que foi a hora que seu filho me obrigou a ficar calada.
- Hoje é seu aniversário? - concordo com a cabeça
- Meu Deus, o que meu filho fez! - ela balança a cabeça várias vezes fazendo o sinal de não, enquanto passa as mãos pelos cabelos.
- Eu fiz o que eu tinha que fazer, mãe - ele se senta no chão, todo arreganhado, vestindo apenas um shot de algodão, que claramente ele usa para dormir. Seus cabelos ruivos estão bagunçados, e sua barba igualmente ruiva, que está por fazer, realçam a cor de seus olhos. Ele me pega analisando dos pés a cabeça. Me sinto corar por justamente estar admirando seu peitoral com músculos no ponto certo.
Ele dá um sorriso por me ver assim
- Eu não sabia que hoje era seu aniversário, engomadinha.
Ele morde um pedaço da maçã que estava em suas mãos que eu nem tinha percebido. Perdi tempo demais encarando seu abdômen. Eu só posso estar ficando louca, estou admirando o corpo do homem que me sequestrou.
- É sim, estou fazendo 21 anos, e graças a você, não posso comemorar com a minha família. - Ele morde outro pedaço, e olha para a televisão, que sua mãe ligou, e nenhum de nós vimos .
Na TV está passando os noticiários, e lá está uma foto minha e de Ayla.
Ai meu Deus.
Dona Helena aumenta o volume e nós três ficamos assistindo para ver 0 que irão falar sobre mim e minha amiga. O título do noticiário é “Filha do Capitão do Bope, Otávio Portula, desaparece”. Eu sabia que meu pai e meu irmão estavam procurando por mim.
O jornalista começa a explicar o caso.
“ Jade Portulla foi vista pela última vez no Baile de Favela na Rocinha, na noite de ontem, momentos antes da operação do Bope na comunidade. De acordo com Otávio Portulla e seu filho Murilo Portulla, que também faz parte do Bope, nenhum dos dois sabiam que a jovem estudante de medicina estaria presente na comunidade. As buscas por ela já começaram, mas até o momento, sem sucesso.”
Eu sabia, sabia que eles não iriam demorar para me procurar, que iriam vir o mais rápido possível atrás de mim. O Jornalista volta a falar.
“ Ayla silva, considerada melhor amiga de Jade Portulla, também estava presente e foi baleada na barriga e se encontra internada no hospital Quin Saúde, um dos hospitais mais bem renomados do Rio de Janeiro. De acordo com laudo médico ela se encontra em coma induzido, e não tem como prever se terá melhoras ou não, só o tempo dirá. Não sabemos se a bala foi do corpo docente do Bope ou de algum outro desconhecido. O caso já está sendo investigado pela polícia.”
Sinto uma mão me tocar, mas não estou enxergando nada, ouço vozes ao longe, mas não entendo o que estão dizendo. Não vejo nem escuto a TV, só sinto meu corpo tremer, e minha mente se desligar. Não sei quanto tempo se passa, mas quando me acalmo, abro os olhos e estou abraçada com meus joelhos e minha cabeça está abaixada entre eles. Levanto a cabeça e vejo que Dona Helena não está mais ali, nem Wick. Olho para um relógio na parede que marca 10 hrs da manhã, e assim percebo que fiquei uma hora na crise.
E meu irmão não estava aqui para me acalmar.
Do meu lado tem um bilhete e um copo D’água, o Bilhete diz que é água com açúcar, que isso irá me acalmar, e que me deixaram sozinhos pois não sabiam o que fazer, que era melhor me deixar ali com meus demônios.
Bebo o líquido do copo, e fico sentada ali, olhando para a TV desligada, com os pensamentos na minha amiga, que pode morrer a qualquer momento, por culpa minha. E me odeio por isso.
Sinto a presença de alguém no cômodo me observando, mas não me movo, não quero ver ninguém, nem falar com ninguém. Sou uma prisioneira aqui, mas não podem me forçar a falar com ninguém. Não sei mais por quanto tempo fico ali sentada, mas em todo o tempo que fico ali, sei que estou sendo observada, e pela sombra que vejo na Televisão, sei que é Wick.