4 - Jade

 Depois de um tempo, me levanto na ponta dos pés. Ouço uma gritaria no andar de baixo. Quando me aproximo da porta, vejo um homem na sala de jogos. Antes que ele me veja, volto para o quarto, mas deixo a porta entreaberta. Quero tentar ouvir.

A voz está longe, mas é agressiva. Não reconheço, mas o tom me assusta. Consigo pegar partes da conversa.

— Eu falei que não era pra machucar nenhuma delas!

— Eu não machuquei ninguém, porra!

— A amiga levou um tiro. Teve que sair carregada daqui.

— Eu vi, e ela também. Se eu não tivesse dado uma coronhada nela, teria chamado atenção.

— Não quero que chegue perto dela. Ela precisa ficar viva.

— Não posso te prometer nada.

— O que você está fazendo?

Dou um salto com a voz que vem de trás de mim.

— Nada! Eu... eu só estava tomando coragem pra descer — minto rápido, tentando manter a compostura.

Ele se aproxima devagar.

— Acho que você estava ouvindo a conversa dos senhores lá de baixo...

— Não estava! Eu... só estava esperando a Dona Helena aparecer, pra me levar até a cozinha — disfarço, tensa.

Ele estreita os olhos, avaliando minha mentira.

— Minha mãe está na cozinha, fazendo o famoso pão caseiro dela. Pelo visto, gostou de você.

— Ah, então você é o filho que mora na casa da piscina? Posso saber o que está fazendo no meu quarto?

— Vi você bisbilhotando enquanto eu jogava. Entrei pela porta da varanda pra te pegar no flagra.

Ele ri, grave. Fico com vergonha por ter sido pega. Os olhos dele são azuis como os do irmão, mas mais frios. Ele é mais alto, cabelos mais escuros, corpo mais largo. A presença dele é mais... sólida.

— Me desculpa — digo, tentando me proteger, com medo de ele contar pro Wick.

— Fica tranquila. Não vou contar pra ele. E também não vou te fazer mal. Mesmo se eu quisesse... estou proibido de tocar um dedo em você.

As palavras dele me aliviam. Se ele e o irmão estão proibidos de me tocar, alguém mais está no comando. Alguém pagou por isso. Mas quem? Quem quer me machucar?

— Vou deixar você se trocar pra ir tomar café. Providenciamos umas roupas — ele aponta pra sacola em cima da escrivaninha.

Ele sai. Quando vou fechar a porta, Wick a segura.

— Pelo jeito já conheceu meu irmão.

— Já sim. Com quem você estava conversando? — vou direto ao ponto.

— Não é da sua conta — ele ergue o tom.

— É claro que é! Estavam falando de mim! Então sim, é da minha conta! — grito, sem medo.

— A partir de agora, toda vez que tivermos visita, você vai ficar trancada aqui. Pra parar de bisbilhotar o que não deve — ele toca meu braço, mas sem força.

Esse toque, mesmo leve, faz meu corpo estremecer.

— Tudo bem. Será que poderia sair do meu quarto agora? Quero tomar banho e trocar de roupa.

Ele assente e sai.

Fecho a porta. Sinto o ar escapar do meu peito. Estou ofegante. A respiração começa a acelerar. Mãos tremendo. Peito apertado.

Uma crise.

Sento no chão e coloco a mão no peito. Me forço a lembrar da minha festa de 15 anos. Meu pai não pôde ir. Estava em uma operação. A crise começou lá, no meio do salão. Murilo segurou minha mão. Me puxou pro peito dele e disse:

"Conta de um a dez, maninha. Tô aqui. Não vou a lugar nenhum."

Ele secava minhas lágrimas, pra não borrar a maquiagem.

"Eu te amo, maninha."

Lembrar do Murilo ajuda. Eu conto de um a dez. Mais de uma vez. Até que a respiração volta. O peito dói menos.

— Você devia estar aqui — digo, entre dentes. — Você me prometeu que não ia a lugar nenhum...

Dez minutos depois, levanto. Escovo os dentes, jogo água no rosto. Me olho no espelho.

Meu reflexo parece um fantasma.

Olheiras escuras, olhar perdido. Meu coração dói. Como eu queria ter feito outra escolha. Era pra eu ter seguido meus instintos. As regras do meu pai. Mas agora é tarde.

Tarde demais.

                                                                           ***

  Saio do quarto e procuro pela cozinha. A casa é enorme. Até porão tem. Nem penso em descer lá. Estou com sorte de ainda estar viva.

O cheiro de pão me guia. Entro na cozinha.

Tudo em inox e preto. Moderna. Linda. Sempre sonhei em ter minha casa. Se essa cozinha fosse minha, eu estaria realizada.

Dona Helena está de costas, coando café. Não percebe que cheguei. Da cozinha, vejo a parte externa da casa.

A piscina é grande, toda de azulejo verde. Camuflada, como se fosse feita pra desaparecer no meio das árvores. O portão é alto, preto. Impossível de escalar. Dois homens armados estão encostados nele.

Volto a olhar para Dona Helena.

— Bom dia, Dona Helena — digo. Ela se vira e sorri.

— Bom dia, menina linda. Conseguiu dormir?

— Depois de muito custo... consegui sim — dou um sorriso torto.

— Toma, come um pedaço — ela me entrega um pedaço de pão. — Tem suco de abacaxi na geladeira. Eu acabei de fazer.

— Suco de abacaxi é meu favorito.

— Jura? Então acertei em cheio.

Quero perguntar quem esteve aqui. Tenho medo de ela contar ao filho. Mas arrisco.

— Dona Helena... quem esteve aqui hoje?

Ela se surpreende com a pergunta direta. Fica em silêncio por alguns segundos.

— Desculpa, minha filha... eu não vi. Fiquei aqui na cozinha o tempo todo. E também... não me meto nos assuntos dos meus filhos.

— Tudo bem, eu entendo... — começo a chorar — é que eu só queria... queria ir pra casa. Pede pra ele me soltar, por favor. Eu imploro...

— Eu não posso. Me perdoa — ela seca minhas lágrimas — eu não sabia que ele teria coragem de fazer isso... ele nunca fez...

— Mas fez agora. E logo comigo...

Coloco as mãos no rosto. Não quero que ela me veja assim.

Ela me puxa devagar, tira minhas mãos, me leva até a sala. Sento no sofá, e ela ao meu lado.

— Como meu filho te encontrou?

Conto tudo. Desde o hotel até o baile. Ela ouve, assustada. Diz que não sabia da operação. Que sempre avisam, mas dessa vez, não falaram nada.

Falo da Ayla, que foi carregada. Que gritei por ela. Que o filho dela me obrigou a ficar calada.

— Hoje é seu aniversário? — ela pergunta. Concordo com a cabeça.

— Meu Deus... o que meu filho fez...

Ela balança a cabeça, passando a mão no cabelo.

— Eu fiz o que tinha que fazer, mãe.

Wick entra na sala, sentando-se no chão. Está arreganhado, de short de algodão. Cabelos bagunçados, barba por fazer. O tom ruivo da barba e o azul dos olhos parecem ainda mais intensos à luz do dia.

Me pega encarando. E sorri.

— Eu não sabia que hoje era seu aniversário, engomadinha.

Ele morde uma maçã. Nem percebi que ele estava com ela. Perdi tempo demais encarando seu abdômen.

Eu só posso estar ficando louca.

Estou admirando o corpo do homem que me sequestrou.

— É sim. Estou fazendo 21 anos. E graças a você, não posso comemorar com a minha família.

Ele ignora o que digo e olha pra TV. Dona Helena ligou em algum momento. Nenhum de nós percebeu.

O noticiário está passando.

A imagem de Ayla. E a minha.

Meu coração congela.

Dona Helena aumenta o volume.

"Filha do Capitão do Bope, Otávio Portulla, desaparece."

Eu sabia. Sabia que eles iriam me procurar. Que não demoraria.

"Jade Portulla foi vista pela última vez no Baile da Rocinha, ontem à noite. Segundo seu pai, Otávio Portulla, e seu irmão Murilo Portulla, ambos membros do Bope, eles não sabiam que a jovem estaria no local. As buscas já começaram."

Respiro fundo, como se fosse a última vez que o faria. O jornalista continua.

"Ayla Silva, amiga de Jade, foi baleada na barriga e está em coma induzido no hospital Quin Saúde. Ainda não se sabe de onde veio o tiro. A investigação continua."

Sinto uma mão me tocar. Mas não enxergo mais nada.

Só ouço vozes distantes. Não entendo.

O corpo inteiro treme.

A mente desliga.

Não sei quanto tempo passa. Mas quando volto a mim, estou sentada, com os joelhos abraçados. Cabeça entre eles.

Levanto o rosto. A sala está vazia. Dona Helena se foi. Wick também.

O relógio marca dez horas da manhã. Fiquei uma hora ali.

E Murilo... não estava aqui pra me acalmar.

Ao meu lado, um copo com um líquido esbranquiçado. Um bilhete.

"É água com açúcar. Isso vai te acalmar. Te deixamos sozinha, porque não sabíamos o que fazer. Era melhor te deixar com os teus próprios demônios."

Bebo devagar.

Fico ali, encarando a TV desligada. Pensando na Ayla. No que pode acontecer. No quanto me odeio por isso.

Sinto a presença de alguém no cômodo.

Não me viro. Não quero ver ninguém. Nem falar com ninguém.

Sou uma prisioneira aqui.

Mas ninguém pode me forçar a falar.

Na tela da TV desligada, vejo o reflexo da sombra parada atrás de mim.

Wick. Observando. Sem dizer uma palavra.

Como se esperasse que eu desmoronasse... de novo.

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