Já fazia quatro dias que Priscila tinha pisado na Penha.
Quatro dias de olhares cruzados, de provocações veladas, de presença sentida mesmo quando ele não estava.
Naquela manhã, ela acordou com o som de moto subindo a viela. Uma voz gritando:
— Ô Rute! Chegou a compra!
Priscila saiu do quarto devagar, com a camiseta larga da irmã cobrindo o short. Lá fora, um moleque de uns quinze anos descarregava três sacolas cheias de alimentos: arroz, feijão, carne, leite, café, sabão em pó, bolacha.
— Que isso, Rute?
Rute empalideceu.
— Eu… eu não pedi isso não. — respondeu, olhando o garoto.
— Foi o patrão que mandou, tia. Falou que é presente de boas-vindas pra nova moradora. — disse com um sorriso debochado.
— Qual patrão? — Priscila perguntou, já sabendo a resposta.
O garoto fez o sinal com dois dedos no ar.
— O BK, né? — e saiu sem esperar resposta.
Priscila virou pro armário. Fechou a porta com força.
— Isso é o quê, Rute? Suborno? Compra de silêncio? Ou de… corpo?
— Calma, Pri. Isso acontece direto. É a forma dele dizer que tá de olho. — Rute disse em voz baixa.
— Mas eu não pedi nada. Não quero nada dele.
— Isso não importa. Quando o BK decide dar, não é questão de querer. É sobre aceitar… ou afrontar.
Priscila bufou, os olhos marejando de raiva.
— Ele não vai comprar minha fome. Nem minha paz.
Rute não respondeu. Só tirou o leite da sacola e colocou na geladeira. Porque negar… era perigoso.
Mais tarde, Priscila saiu pra respirar. Precisava andar, ver gente, esquecer aquele gesto que tinha gosto de ameaça disfarçada de gentileza.
Passou pela quadra, pela venda, pelas barracas de lanche. A favela vivia, pulsava, mesmo cercada por medo. Ela sabia que o mundo ali era dividido em dois: os que ajoelhavam… e os que fingiam que ajoelhavam.
Parou no salão da Cacau pra fazer a unha. Conversa rolando solta:
— Menina, o B.K já pegou aquela Drê, a Paloma e até a Lorena da rua de cima.
— Ele gosta de mulher que não dá fácil, mas quando dá, ele vicia.
Priscila escutava calada, lixando as próprias unhas.
— E essa novata aí, cunhada do Fabão? Disseram que ele já mirou.
— Ela? Bonita, mas tem cara de metida. Vai dar trabalho.
Cacau olhou pra ela pelo espelho.
— Tá ouvindo, né, Pri? No morro, notícia corre mais rápido que wi-fi.
Priscila sorriu sem graça.
— Tô ouvindo. Mas não tô interessada. Pode avisar.
A mulher riu.
— Não adianta avisar não, filha. BK não pergunta. Ele escolhe.
No fim da tarde, a vida seguiu. Os meninos empinavam pipa, os rádios davam o plantão do tráfico, e os gritos ecoavam de barraco em barraco.
E ele apareceu.
Sozinho.
Subiu devagar a escadaria da viela, parou na frente da casa de Rute e bateu palma uma vez. Só uma.
Fabão foi quem atendeu.
— E aí, patrão?
— Tudo tranquilo. Só vim ver como a nova moradora tá se adaptando. — disse, como se fosse visita comum.
Fabão não ousou negar. Chamou Rute.
Rute chamou Priscila.
Ela apareceu na porta, sem maquiagem, cabelo preso, camiseta simples e olhar firme.
— Tô bem. — disse antes mesmo que ele perguntasse.
— Fico feliz. — BK respondeu, olhando dentro dos olhos dela. — E gostou da compra?
— Não precisava. — respondeu seca.
— Eu sei. Mas eu quis.
Silêncio.
— Aqui é assim. Quem chega, a gente cuida. — ele completou.
Ela sorriu de canto.
— Cuidar não é invadir espaço. Nem cercar com favor.
Ele riu pela primeira vez. Um riso de canto, torto, que mostrava mais perigo do que simpatia.
— Tu é afiada, hein?
— Tô me defendendo.
— E se eu disser que não quero te atacar?
— Aí eu vou saber que você mente bem. — rebateu, sem piscar.
Ele a encarou por longos segundos.
— Qual é o teu medo? — ele perguntou.
— De perder o pouco que ainda me resta.
— E o que é?
— Eu.
Silêncio.
Ele engoliu seco. Pela primeira vez, sentiu que a mulher à sua frente não era só bonita. Era bruta de alma. E isso… era mais perigoso do que qualquer arma.
— Não vou te quebrar. — ele disse.
— Mas pode me rachar. — ela devolveu, com a voz baixa.
Ele abaixou os olhos. Respirou fundo. E virou as costas.
— Quando quiser conversar… sem guerra… tô por aqui.
E desceu. Sem olhar pra trás.
Mas deixou um incêndio.
Dentro dela.
Naquela noite, Priscila dormiu sem sono. O corpo quente. A pele pedindo alívio. Mas a mente em guerra.
Não era paixão. Era desejo. Bruto. Selvagem. Não consentido pelo coração.
B.K não era o tipo de homem que ela queria.
Fogo nas veias.
E ela sabia: brincar com fogo… queima.