O Olhar que Desarma

Na manhã seguinte, o sol mal tinha subido, mas o burburinho já tomava conta das vielas.

— Diz que o cara tentou vender no ponto errado.

— Cê é doido? Logo na área do B.K?

— Tinha que morrer mesmo.

Priscila escutava as conversas vindo da janela da cozinha enquanto mexia o café com a colher velha de alumínio. Cada palavra sobre o crime da madrugada era dita com mais naturalidade que previsão do tempo. Na favela, matar era método. Sangue era aviso.

Ela não fazia perguntas. Só escutava. Aprendia calada.

— Dormiu bem? — Rute perguntou, ajeitando a alça do sutiã por baixo da blusa puída.

— Dormi o suficiente. — respondeu, sem emoção.

— Aquilo de ontem... não acontece sempre, viu? — Rute tentou aliviar.

Priscila virou o rosto devagar.

— Você tem noção do que cê acabou de falar?

Rute sorriu sem graça, pegando o pão amanhecido da mesa.

— Tô tentando te acalmar, só isso. A gente se acostuma, sabe?

Se acostuma.

Era isso que doía em Priscila. A normalização da dor.

— Eu não quero me acostumar com isso. — respondeu firme.

Fabão entrou na cozinha logo depois, já com o rádio no bolso e o boné virado pra trás.

— Dia de ronda. BK vai passar nas bocas pra checar geral. — anunciou, enquanto pegava a xícara do armário.

— Ele passa sempre? — Priscila perguntou com desinteresse fingido.

— Sempre que o clima pesa. Depois de execução então, ele aparece em tudo quanto é canto. Mostra que é ele que manda.

— Entendi. — respondeu, olhando pra xícara dela.

Mas por dentro, o pensamento era outro: “Quem é esse homem que acha que controla até o medo dos outros?”

No início da tarde, Priscila desceu a rua principal pra comprar sabão em pó. A quebrada tava viva. Crianças brincando, o som de um funk abafado no fundo e o cheiro de frango assado vindo da venda da dona Cleide.

Ao passar perto da base da boca, os olheiros disfarçaram o olhar. Ninguém encostava, mas todo mundo reparava.

— É a cunhada do Fabão. — cochichavam.

— A que chegou ontem.

— Bonita, né?

Ela fingia que não escutava. Mas escutava tudo.

Chegando na vendinha, pegou o que precisava e esticou o dinheiro no balcão. Foi quando sentiu. Não viu. Sentiu.

Um arrepio subiu pela espinha. Não era medo. Era alerta.

Virou o rosto devagar… e lá estava ele.

B.K.

Sentado na calçada do outro lado da rua. Um cigarro entre os dedos. Camisa larga, boné baixo, bermuda de tactel, e um fuzil encostado do lado, como se fosse só mais um acessório.

Ele não disfarçava o olhar.

Não era tarado.

Não era vulgar.

Mas encarava como quem lê.

Priscila respirou fundo, pagou a compra e saiu sem pressa. Ao passar por ele, cruzou os olhos. Só por dois segundos. Mas tempo suficiente pra saber que ali existia uma guerra silenciosa.

Ele não falou nada.

Ela também não.

Mas naquele momento, a disputa começou.

— Ele te olhou? — Rute perguntou quando Priscila voltou pra casa.

— Quem?

— O B.K.

— Ele olha pra todo mundo. É o dono do morro, não é? — respondeu, abrindo o pacote de sabão em pó.

— Não. Ele olha diferente quando interessa. E quando interessa… ele vai atrás.

Priscila parou.

— Eu não sou uma das mulheres dele.

— Ainda.

— Não viaja, Rute. Eu não tô aqui pra isso.

Rute calou. Sabia que insistir seria mexer numa ferida que nem ela conhecia direito.

Mas também sabia: B.K não era homem que desistia fácil.

Na noite seguinte, o morro tava mais agitado. Uma festinha rolava na quadra de cimento perto da igreja abandonada. Um churrasco improvisado, umas caixas de som, e a cerveja descendo como se amanhã não existisse.

— Vamo, Priscila. Só um pouquinho. Cê precisa se distrair. — Rute insistiu.

Ela pensou. Respirou fundo. Ouvia o som do baile desde a janela. Sentia o chão tremer.

— Tá. Mas só por pouco tempo.

Vestiu uma calça jeans justa e uma blusa preta de alça. Cabelo preso. Cara limpa. Ela não tava ali pra se mostrar. Mas mesmo assim… chamava atenção.

Ao chegarem na festa, os olhares voltaram. Priscila virou copo de cerveja e ignorou tudo. Dançava com a irmã. Ria de verdade. Pela primeira vez em muito tempo, o sorriso dela não era fingido.

Até que ele chegou.

B.K.

Rodeado de dois seguranças, mas sempre um passo à frente. Quando entrou na quadra, o som pareceu baixar. Era como se o ambiente respeitasse. O povo abriu espaço. As meninas se ajeitaram. Os homens o cumprimentaram de cabeça baixa.

Ele olhou em volta… até achar.

Priscila.

Ela parou de dançar.

O coração? Disparou.

Não de medo. De tensão. De desafio.

Ele veio.

Parou a um metro dela. Sem encostar. Só presença.

— Boa noite, Priscila. — disse com voz baixa, rouca, perigosa.

Ela não perguntou como sabia o nome. Só respondeu.

— Boa noite.

— Tá gostando da quebrada?

— Eu tô aqui porque não tive muita escolha.

— Eu também não. — Ele sorriu de lado.

— Mas cê comanda tudo, né?

— Isso não significa que a gente escolhe onde nasce. — ele respondeu.

Ela não esperava essa resposta.

Por um segundo, viu humanidade naquele olhar.

E isso a desarmou mais do que o fuzil encostado na parede.

— Cê é diferente. — ele disse.

— E cê é tudo que eu quero distância. — ela rebateu, firme.

Ele riu.

— Então vai ser divertido.

Ela encarou. Por dentro, tremia. Por fora? Armadura.

— Cê acha que porque tem fuzil e homem armado, consegue tudo que quer?

— Não. — ele respondeu, tranquilo. — Mas eu gosto de conquistar devagar. Ver quando cai.

Ela virou as costas. O peito explodindo de raiva, nervoso e… tesão.

Naquela madrugada, deitada na cama fina, Priscila pensava no olhar dele.

Um olhar que não implorava.

Não pressionava.

Só dizia: “Eu te vejo.”

E isso era perigoso. Porque ela passou a vida inteira tentando ser invisível pra sobreviver.

Mas agora… o rei do morro via nela o que nem ela queria mostrar.

E pela primeira vez em anos…

Ela sentia medo de sentir.

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