A chuva começou fina, quase tímida, como se hesitasse em tocar as janelas da casa.
Evelyn nem percebeu. Continuava no chão do quarto, o caderno fechado sobre o colo, os dedos trêmulos nas bordas. O nome gravado em sua mente: Lucas.
Ela tentou racionalizar. Talvez fossem cartas antigas, rabiscos sem importância. Talvez Benjamin só estivesse desabafando. Talvez—
Mas a verdade gritava dentro dela: algo estava errado.Fazia mais de mil dias desde que Benjamin morrera. E ainda assim, Evelyn se sentia em suspenso. Como se sua vida fosse um livro que alguém esqueceu de terminar. Como se cada manhã fosse uma repetição da página anterior.
E agora… agora havia algo novo. Uma fresta de ar num cômodo fechado por tempo demais.
Ela levantou devagar, com os músculos rígidos por tanto tempo sentada. Caminhou até a sala com o caderno nos braços. O relógio na parede marcava quase 22h. Tarde demais para ligar para alguém. Tarde demais para perguntar por quê.
Mas não tarde demais para lembrar.
Lucas Hale.
Ela o conheceu na mesma semana em que conheceu Benjamin. Eles eram inseparáveis — diferentes como o dia e a noite, mas unidos por uma amizade feroz, quase tribal. Lucas era o tipo de pessoa que preenchia os espaços sem pedir licença. Alto, provocador, com um sorriso torto e um olhar que parecia sempre saber mais do que dizia.Evelyn sempre achou que ele a olhava de um jeito estranho.
Benjamin ria disso. Dizia que Lucas era apenas protetor, leal até demais. Mas às vezes… às vezes havia silêncios entre eles que Evelyn não sabia como interpretar.E então, depois da morte de Benjamin, Lucas desapareceu. Literalmente.
Não respondeu às mensagens, aos e-mails, às ligações.
No funeral, mal olhou para ela. Parecia destruído. Culpado. E no dia seguinte, sumiu.Evelyn tentou não pensar mais nele.
Até agora.
Com os dedos apertando o caderno contra o peito, ela foi até a estante da sala e puxou uma velha caixa de madeira. Dentro, havia documentos, papéis antigos, e um envelope onde ela guardava algumas poucas informações sobre o passado de Benjamin e Lucas — fotos da faculdade, recortes de jornal, e um cartão de visita antigo de uma exposição que Lucas havia feito em Portland, anos atrás.
No verso, uma anotação rabiscada:
“Blue Ridge Studio — Carolina do Norte.”
Um estúdio. Um nome. Um possível endereço.
O suficiente para começar.Evelyn sabia o que estava fazendo?
Não. Sabia o que esperava encontrar? Também não. Mas alguma parte dela — talvez a parte mais viva que restava — sabia que não podia continuar fugindo.Era hora de abrir aquelas páginas.
E mais do que isso: era hora de escrever as próximas.Duas horas depois, ela estava diante do computador, digitando com cuidado no campo de busca.
Lucas Hale – fotógrafo – Carolina do Norte.
Vários resultados surgiram. Exposições antigas. Prêmios. Um blog abandonado. Uma menção recente a uma galeria no interior do estado.
Coração acelerado, Evelyn clicou em um dos links.
“Lucas Hale: o fotógrafo que parou de fotografar. Após três anos afastado das lentes, o artista retorna com um projeto silencioso, baseado em sombras, perdas e silêncio. Exposição marcada para o mês que vem, na Blue Ridge Gallery.”
Ela não sabia se aquilo era destino, coincidência ou apenas o tipo de coisa que o universo lança no seu colo quando você finalmente se dispõe a olhar.
Mas de alguma forma, era ele.
E ele estava mais perto do que ela imaginava.Evelyn fechou o navegador. Voltou o olhar para o caderno.
Na última página que Benjamin escreveu, talvez estivesse a primeira verdade que ela nunca quis enxergar.
Mas agora, era impossível ignorar.