A luz do amanhecer entrava suave pela janela do quarto. Não era mais aquela claridade agressiva de sol forte do alto do morro — era uma luz tímida, como se o mundo lá fora ainda tivesse receio de anunciar um novo dia. O som do monitor cardíaco ainda pulsava em seu ritmo constante, mas agora, aos ouvidos de Rei, parecia uma música de fundo distante, quase como se pertencesse a outro universo. Ele piscou com lentidão, ainda sentindo os resquícios da anestesia no corpo e uma exaustão quase desumana. Mariana não estava no quarto naquele momento, e o silêncio lhe permitiu, pela primeira vez desde que acordara, estar sozinho com seus próprios pensamentos. Não gostava da sensação. Parecia que o vazio dentro dele começava a gritar. Tentou mexer a perna. A dor veio como uma punhalada. Depois tentou erguer o tronco, mas a musculatura respondeu com um tremor, como se seu próprio corpo o advertisse: “não hoje”. Mesmo assim, teimoso como sempre fora, ele afastou os lençóis, ignorando os fios co
Narrado por Melissa Nunca tive muito. Nunca fui muito. Lembro da primeira vez que subi aquele morro. O céu tava cinza, e não era só pelo clima. Era como se o mundo todo estivesse em luto por mim. O tênis furado que eu usava deixava a água da chuva entrar, e o jaleco que eu carregava dentro da bolsa era o único escudo entre mim e a realidade. Na infância, o morro era sinônimo de grito. Grito da minha mãe pedindo paz. Grito do meu pai mandando ela calar a boca. Eu ficava no canto, escondida, segurando uma faca cega e esperando o pior. Ele nunca me bateu. Sabia que eu era bruta, nascida na fúria. E mesmo sendo ele meu pai, sempre soube que se me tocasse, eu devolveria em dobro. Ele tinha medo da filha que criou. Engraçado isso. Minha mãe morreu quando eu tinha doze. Câncer. O hospital não tinha recurso. A gente não tinha dinheiro. Ela dizia que eu ia ser enfermeira, “anjo de branco”, como ela falava, rindo com aquele dente faltando do lado esquerdo. Quando ela se foi, ficou só o eco
Narrado por Mariana A sala do hospital tinha um cheiro estéril de álcool e promessas. Era engraçado como lugares assim, cheios de lembranças dolorosas, também podiam se transformar no palco dos nossos momentos mais felizes. Eu apertei a mão de Caio — meu Rei — enquanto o médico preparava o equipamento para o ultrassom. Ele ainda usava a cadeira de rodas, consequência de toda a merda que atravessamos nos últimos meses. Sequelas que a guerra deixou no corpo dele, mas que nunca conseguiram tocar sua alma. Enzo, nosso pequeno terremoto, pulava de cadeira em cadeira, curioso demais pra ficar parado. A enfermeira sorria de canto, compreensiva, e eu apenas me permiti rir. Pela primeira vez em muito, muito tempo, o riso não era amargo. Era leve. Verdadeiro. — Pronta? — perguntou o médico, um senhor de barba grisalha e mãos experientes. Eu assenti, meu coração batendo acelerado de tanta ansiedade. Deitei na maca, levantando a blusa, e senti o frio do gel na barriga já arredondada.
Narrado por Mariana Em segundos, o que era uma festa simples e feliz virou uma cena de novela mexicana em ritmo acelerado. Melissa tentou coordenar alguma espécie de plano de evacuação, mas acabou gritando com Bruno, que tropeçou em uma das cadeiras e quase derrubou a mesa de bebidas. Enzo começou a chorar alto, os olhos arregalados de medo, e correu na minha direção. — Não deixa a tia Mari morrer! — ele soluçava, abraçando minha perna. — Já perdi minha mãe! — Ei, meu amor... — tentei falar, segurando a barriga, sentindo outra contração intensa. — Eu não vou a lugar nenhum. Tô aqui, com você. Caio me pegou nos braços sem pensar duas vezes. O ex-traficante, o homem de ferro, carregando a mulher dele como se fosse feita de porcelana. — Sai da frente! — ele gritou, já se dirigindo ao carro. Ninguém ousou contrariá-lo. Melissa correu para abrir a porta, Bruno tentava ligar o carro mas tremia tanto que Caio o empurrou para o banco do passageiro e assumiu o volante, mesmo com as perna
Narrado por Melissa A vida era uma rotina meticulosamente controlada. Acordar antes do sol, preparar o café, deixar a casa em ordem, seguir para o hospital. Voltar exausta, tirar os sapatos na porta, ouvir o som abafado da televisão vindo da sala e encontrar Bruno, sempre com o mesmo olhar silencioso e dominador, como se o mundo girasse em torno dele. Talvez girasse mesmo. Pelo menos, o mundo da Rocinha agora girava. Ele havia se tornado oficialmente o chefe do tráfico. Comprou a dívida do pai como quem compra um império, e no pacote, comprou a mim também. Não havia contrato, não havia papel, mas havia o peso da obrigação. Um tipo de cativeiro disfarçado em liberdade. Eu podia sair, ir ao hospital, visitar Mariana quando fosse permitido. Mas nada era realmente escolha minha. Eu era dele. A gente transava. Dormíamos em quartos separados, às vezes ele me puxava no meio da madrugada, sem uma palavra, apenas desejo e posse. E eu aceitava. Por vezes, sentia prazer. Em outras, sentia vác
Narrado por Bruno O sol mal começava a tocar as janelas e eu já táva acordado, com a Melissa encolhida nos meus braços. A noite tinha sido longa. Ela táva com o coração estraçalhado depois do que aconteceu com o Magrinho. Passei horas tentando acalmar ela, abraçando apertado, beijando sua testa, ouvindo o choro dela afundado no meu peito. Era uma das poucas vezes que eu via a Melissa desmoronar. E eu não sabia lidar com isso. Ela sempre foi fogo, tempestade, confiança. Ver ela em pedaços me deixava sem rumo. Ninguém sabia ao certo o que tinha rolado com o moleque, mas uma coisa eu tinha certeza: ele se meteu com gente errada. Mesmo com o incômodo que eu tinha com a proximidade dele com a Melissa, eu respeitava o Magrinho. Ele era responsa, um vapor de verdade. Sempre fez o certo, nunca deu dor de cabeça. Trabalhava calado, sabia o lugar dele. E o mais importante: nunca traiu. Isso, no nosso mundo, é raro. Tz, meu braço direito, me ligou ontem à noite. Disse que o moleque táva por u
Narrado por MelissaA tarde passou em câmera lenta, envolta no conforto raro de uma tranquilidade que eu sabia que não duraria muito. Bruno e eu ficamos juntos, assistindo a filmes velhos na televisão, os pés entrelaçados no tapete da sala. De vez em quando, ele fazia comentários sobre a academia dele, sobre como os treinos estavam cheios, como os meninos do morro estavam comparecendo, como ele estava pensando em abrir uma filial em outro bairro.— Cê acha que a galera de fora ia colar mesmo? — ele perguntou, os olhos fixos em mim.— Se você levar o mesmo padrão que tem aqui, com certeza. Não é todo dia que um dono de academia é também um chefe de tráfico, né?Ele riu, aquele riso rouco, curto.— Cuidado com o que fala, Melzinha...— Cuidado nada. Tá cheio de vapor puxando peso contigo, Bruno. Aquele lugar é uma mistura de academia com campo de recrutamento.— E você ama, né?— Amo treinar. O resto, eu finjo que não vejo.Bruno esticou a mão e puxou minha perna sobre o colo dele, afag
Narrado por MelissaO hospital cheirava a desinfetante e urgência. Passei a madrugada correndo de um lado pro outro, trocando soro, limpando ferimento, entregando exames. Era o caos habitual, mas eu gostava. A profissão me mantinha viva, me dava um senso de propósito. No meio de tanto sangue e dor, eu ainda me sentia útil.Magrinho havia acordado. Assim que abriu os olhos, pediu por mim. Não quis deixar ele esperando. Entrei na enfermaria e vi aquele rosto conhecido, mesmo machucado, ainda conseguia sorrir.— Olha só quem tá viva e linda... — ele murmurou, a voz fraca.Sorri, puxando uma cadeira pra sentar ao lado dele.— E olha só quem decidiu voltar dos mortos.Ele tentou rir, mas se contorceu de dor.— Não faz gracinhas, Magrinho. Você precisa descansar.— Não consigo descansar enquanto não souber que quem fez isso vai pagar.Suspirei.— Eu quero isso tanto quanto você. Mas precisa se recuperar primeiro.Ele me olhou com uma intensidade que me tirou o ar.— Mel... se eu tivesse mor