O mundo girou. Senti meu corpo ser empurrado para trás como uma marionete cortada pelos fios. Caí de lado no asfalto, com a graça de um saco de batatas jogado do décimo andar.
A primeira coisa que pensei?
Meu Deus, se eu morrer agora, minha filha vai achar que fui derrotada por um salto de R$ 39,90.
Pessoas começaram a se aglomerar ao meu redor como formigas em volta de um pedaço de pão caído. Vozes se cruzavam, altos, baixos, sussurrados, apressados. Tudo soava abafado, como se eu estivesse ouvindo o mundo debaixo d’água. Minha cabeça girava como uma roda-gigante bêbada. O que mais sentia era a dor latejante no quadril, uma fisgada no braço e... ótimo, um gosto metálico na boca. Sangue. Perfeito. Que glamour.
A porta do carro preto se escancarou com força.
— Meu Deus! — exclamou uma voz masculina, com aquele timbre de quem já viveu mais primaveras que eu. Soava genuinamente apavorado.
De relance, vi um homem alto e imponente se aproximar, com cabelos grisalhos penteados com disciplina militar. Vestia um terno caro, do tipo que grita “sou milionário e sei disso”. Havia algo de nobre no jeito como ele se ajoelhou ao meu lado, o olhar apressado entre compaixão e pânico.
Tirou o celular do bolso com mãos trêmulas, provavelmente um modelo tão caro quanto o carro que quase me mandou para o além.
— Senhorita, você consegue me ouvir? Eu… sinto muito, eu não a vi. — disse o homem ao lado dele, aparentemente seu motorista. Com uma culpa que parecia sincera. — Mas também… a senhorita atravessou com o sinal vermelho para pedestres — completou, num tom que misturava preocupação com uma leve cutucada passivo-agressiva.
Eu assenti, franzindo o rosto na tentativa de parecer arrependida e não derrotada pelo asfalto.
— Sim… eu sei… mas acreditem… o salto foi o verdadeiro vilão aqui.
Minha voz saiu fraca, mas ainda carregada com o sarcasmo de sempre. Estava zonza, tentando me apoiar no cotovelo, sentindo como se o mundo fosse uma daquelas plataformas de brinquedo girando sem parar.
Foi só quando ergui os olhos que o vi com mais nitidez. Não o reconheci, mas ele parecia muito... familiar. E aqueles olhos? Negros mais uma vez. Qual é, hoje é dia da perseguição dos olhos negros contra mim?
— Não… não precisa chamar uma ambulância. Só me ajude a levantar — murmurei, tentando soar firme, mesmo com o corpo gritando o contrário.
— Você está sangrando. Não vou deixá-la ir assim. Eu assumo a responsabilidade. Você vai ao hospital agora — ele declarou com tanta firmeza que, por um segundo, achei que estivesse dando uma ordem militar.
Antes que eu pudesse sequer abrir a boca para argumentar, ele já fazia um gesto para o seu motorista, e juntos me ergueram com cuidado. Fui colocada no banco de trás do carro — o mesmo que havia me atropelado. Que ironia. Deveria haver um cupom de desconto para isso.
O banco cheirava a couro novo e perfume amadeirado caro, daqueles que só se compra em lojas onde não se entra de chinelo. Conforto demais para alguém que tinha acordado às sete e vinte da manhã com uma blusa amassada, um cabelo semi-domado e uma filha exigente me pedindo pão com a casca cortada.
Durante o trajeto até o hospital, o motorista dirigia rápido, mas com uma precisão quase calculada — como se estivesse acostumado a lidar com emergências, ou com o controle absoluto de tudo. Enquanto isso, o senhor do banco do passageiro falava, falava, falava… um discurso que ecoava no carro como ruído branco. Eu não entendia uma única palavra. Só via o movimento preocupado de seus lábios e sentia o ritmo da dor aumentar em meu quadril a cada solavanco mais brusco.
De tempos em tempos, o motorista me lançava olhares pelo retrovisor. Havia uma tensão em seu maxilar, mas também uma preocupação que parecia sincera.
Até que, ao parar em frente à emergência, o senhor de olhos iguais os de Gamora quebrou o silêncio:
— Qual seu nome?
Demorei um segundo para responder. Talvez pela dor. Talvez pela forma como ele me olhou. Ou talvez por aquele tom de voz... grave, direto, que ecoava mais fundo do que deveria e que me intimidou.
— Leydi. Leydi Dayane Moura — respondi, tentando não soar trêmula.
Ele assentiu lentamente. Por um instante, tive certeza de que meu nome soou familiar para ele. Claro, afinal, tenho um nome bem famoso. Seus olhos pareceram escurecer, como se revirassem arquivos mentais à procura de algo. Mas logo desviou o olhar, recompondo a expressão.
— Sou Arthur Lancaster. E juro que vou me certificar de que tudo que aconteceu hoje será reparado — disse com convicção, como se estivesse selando um contrato.
Arthur Lancaster?
O nome soou como um trovão abafado dentro da minha cabeça. Meus olhos se arregalaram antes mesmo que eu pudesse disfarçar.
Arthur Lancaster. Não. Não pode ser.
O dono da Lancaster Corporation. O homem no topo da hierarquia da empresa onde — veja só! — eu tinha uma entrevista marcada naquela manhã.
Meu coração gelou. Quase literalmente. Como se tivesse caído num balde de gelo seco.
O homem que me atropelou com um carro de luxo, me colocou no banco traseiro como uma boneca quebrada e agora me levava ao hospital cheirando a riqueza... era exatamente o motorista do homem para quem eu ia implorar um emprego.
Irônico. Trágico. Um toque de novela mexicana com roteiro de comédia de humor ácido.
Como eu explico isso na recepção? “Oi, sou a moça da entrevista. Ignorem a limitação motora, fui atingida gentilmente pelo próprio chefe — pelo motorista dele na verdade —. E sim, ainda quero o cargo.”
Mantive a boca fechada. Mas minha cabeça gritava.
Que dia, Leydi Dayane Moura. Que dia.