O despertador tocou pela terceira vez. E, como em todos os outros dias da minha vida adulta — essa prisão sem grades chamada responsabilidade — fui derrotada pelo maldito botão de soneca. De novo.
— Leydi Dayane! — gritou Bia, minha melhor amiga e despertador humano, do corredor. — São sete e vinte! Você não ia acordar às seis?!
Pulei da cama num impulso desajeitado, tropeçando no cobertor enrolado no meu tornozelo como uma serpente vingativa. Meu cabelo desgrenhado colava na testa suada e, ao me olhar no espelho, pensei: “Bela escolha, vida. Está de parabéns.” Começamos o dia com o pé esquerdo — e sem tempo para café. O que, para mim, é o equivalente a começar uma maratona com um salto agulha.
— Gamora já acordou? — gritei, tropeçando nos chinelos enquanto tentava decidir entre vestir a calça social ou queimar calorias só tentando encontrá-la.
— Está no sofá, comendo biscoito e vendo desenho. Mas está sem meia. E a blusa está do avesso!
Claro que estava. Porque mães não têm o direito de um início de manhã pacífico, apenas o dever sagrado de apagar incêndios domésticos antes das oito.
Corri até a sala com passos rápidos e caóticos, prendi o cabelo num coque torto usando o primeiro lápis que achei — provavelmente um da Gamora, com glitter — e me ajoelhei diante da minha filha de quatro anos como se eu fosse uma guerreira pedindo bênção ao seu pequeno imperador.
Gamora me olhou com aqueles olhos grandes, espertos e absurdamente expressivos — os mesmos olhos escuros de um homem que ela nunca conheceu, mas que vive assombrando nossas manhãs em detalhes genéticos.
— Mãe, minha meia sumiu. — fez um biquinho dramático. — E eu queria a mochila do Hulk, não a da Barbie!
— A do Hulk ainda está molhada, amor. Se lembra da “chuva de ontem”? E você adora a Barbie, lembra? Linda e delicada.
Ela cruzou os braços, fingindo que ia chorar, mas me deixou trocar a blusa e ajeitar a lancheira com uma dignidade silenciosa que só crianças dramáticas sabem fazer. No banheiro, escovei os dentes com uma mão, passava base com a outra e ainda tentava ajeitar o lápis-coque que já ameaçava escorregar como minha sanidade. Uma verdadeira mãe multitarefa, treinada para vencer guerras domésticas antes do primeiro gole de café.
Vestida, maquiada às pressas, com a mochila rosa da Barbie em um ombro e minha bolsa de adulta fracassando elegantemente no outro, saímos de casa num pique olímpico.
O céu estava cinza, o ar tinha cheiro de pão queimado vindo de algum vizinho otimista, e o vento jogava meu cabelo na cara como se dissesse: "Vai dar ruim, miga."
— Você vai chegar a tempo da entrevista? — perguntou Bia, encostada na porta com sua caneca de café como se estivesse num comercial da Nespresso.
— Se o universo não conspirar contra mim e o ônibus não explodir em chamas místicas no meio do caminho... talvez — respondi, fazendo um sinal da cruz e torcendo pra São Currículo Interminável interceder por mim.
Deixei Gamora na escola com um beijo na testa, um carinho no cabelo e a promessa de um sorvete se ela fosse boazinha (chantagem emocional: o combustível das mães modernas). Me virei, respirei fundo e corri até o ponto como quem foge da própria realidade.
O ônibus, claro, estava lotado. O ar-condicionado? Apenas decorativo. E um senhor idoso, profundamente entregue aos braços de Morfeu, resolveu que meu ombro era o travesseiro perfeito. Mas ignorei tudo. Hoje era importante. Hoje era o meu dia.
Ou pelo menos, era o plano.
A entrevista era na Lancaster Corporation. A vaga? Secretária do CEO. Um cargo que pagava bem, com benefícios suficientes para, quem sabe, nos tirar do aperto financeiro — ou ao menos permitir que eu comprasse café sem olhar o extrato bancário depois. Eu precisava daquele emprego mais do que precisava de paz mental. E olha que eu realmente precisava de paz mental.
Assim que desci do ônibus e meus pés tocaram a calçada, respirei fundo. O prédio era ainda mais imponente do que nas fotos do G****e: todo feito de vidro espelhado, refletindo o céu cinza e os prédios ao redor como uma joia moderna em meio ao caos urbano. Uma torre elegante e ameaçadora, como se dissesse: “Se você não for boa o suficiente, nem tente entrar.”
Minhas mãos estavam suando. Umidade nervosa, versão de luxe.
— Você consegue, Leydi Dayane— murmurei para mim mesma, tentando parecer confiante, mesmo tropeçando nos próprios pensamentos.
Comecei a andar com passos firmes (ou quase), já revisando mentalmente as respostas mais decoradas do universo: “Qual é o seu maior defeito?” “Perfeccionismo.” Claro. Mentiras socialmente aceitas.
Foi então que, do nada, o salto do meu sapato esquerdo quebrou. Simplesmente quebrou. Sem cerimônia, sem aviso, sem misericórdia. Crac! E lá estava eu: mancando, cambaleando e quase beijando o chão da calçada como se fosse a diva de um drama mexicano.
Soltei um palavrão abafado — do tipo que você aprende a disfarçar quando vira mãe — e tentei recuperar o equilíbrio. No desespero, me agarrei na primeira coisa sólida que passou ao meu lado: um homem. Que, claro, era o oposto de acolhedor.
Ele parou bruscamente, girando o corpo como se tivesse sido atacado por uma abelha. A carranca no rosto dele era tão simpática quanto um fiscal de imposto de renda. Os cabelos estavam presos num coque alto, quase samurai, e a barba cerrada dava a ele um ar de vilão de filme Noir. Mas o que realmente me paralisou foram os olhos. Negros. Intensos. Idênticos aos de alguém que eu preferia não lembrar agora. Alguém que minha filha nunca conheceu — mas cujos traços carregava no rosto todos os dias.
— Está maluca? — ele disparou, com o cenho franzido e a voz tão afiada quanto sua mandíbula.
— Desculpe — respondi rápido, sem fôlego. — Meu salto quebrou, e o reflexo foi me segurar na primeira coisa que vi.
— Como se eu fosse um poste qualquer — ele resmungou, ajeitando o terno impecável e negro, como se eu o tivesse contaminado com a praga do proletariado só por encostar nele.
Respirei fundo. Foco, Valerie. Você está atrasada, mancando, e agora levou um coice de um modelo da alta costura com o carisma de uma porta emperrada.
— Nossa. Grosso — murmurei, mais para mim mesma, o olhando com desdém. E olha, não era só a cara de mal-humorado dele — que de feia não tinha absolutamente nada — era o combo completo: o poço da má educação, da arrogância e da falta de gentileza. Uma joia rara da antipatia masculina.
Ele parou, olhou por cima do ombro e soltou:
— Grosso? Grosso é a cabeça do meu pau.
E saiu andando, deixando um rastro de indignação e incredulidade flutuando no ar, junto com o eco do palavrão mais desnecessário do século.
Fiquei ali, com a boca aberta e os olhos arregalados, desejando ter uma resposta genial na ponta da língua. Mas tudo o que consegui soltar foi:
— Que panaca!
Sim, panaca. O xingamento oficial do meu vocabulário controlado. Preciso urgentemente atualizar meu repertório de ofensas — ou arrisco ensinar palavrões de alto calibre à minha filha. E sinceramente, já basta ela achar que “saco” é uma emoção.
Olhei para os sapatos pretos nos meus pés — agora desiguais, mancando de dignidade — e bufei com força. Parecia que o universo tinha me inscrito num reality show secreto: Sobrevivendo ao Inferno Urbano em Salto Alto.
Sem escolha, segui mancando até a lojinha de conveniência mais próxima. A vitrine empoeirada exibia salgadinhos, pilhas e objetos aleatórios como se dissesse: “A salvação da sua vida está aqui, entre o super bonder e a paçoca.” Encontrei uma cola instantânea, apegando-me à esperança de que ela fizesse milagres. Literalmente, rezei na prateleira. Por favor, que funcione... e que não cole meus dedos no processo.
Fui até o caixa. E então... a cereja no bolo do caos: o saldo do cartão foi recusado. Rá! Ótimo. Excelente. Bravo, destino!
Resumindo: ou eu colava o salto e voltava para casa a pé, de alma esmagada e dignidade fragmentada, ou seguia para a entrevista com os saltos quebrados, parecendo uma girafa bêbada tentando manter a pose. É claro que escolhi a primeira opção. Entre o ridículo e o remendo, eu fico com o remendo.
Paguei a cola com o último suspiro financeiro da minha carteira, o dinheiro do ônibus e como uma cirurgiã de campo de batalha, encostei no poste em frente à loja. Tirei o sapato do pé esquerdo, abri o tubo como se fosse sagrada unção e colei o salto no lugar. Segurei com firmeza por dois longos minutos, sentindo o cheiro químico arder o nariz e a paciência se dissolver.
— Isso deve dar — murmurei, calçando o sapato de novo, testando o equilíbrio como quem testa um prédio reconstruído com fita adesiva.
Se antes eu estava atrasada, agora já podia ser considerada oficialmente perdida no tempo. Mas sem tempo pra lamentações: era ir ou ir. Ou, no meu caso, correr elegantemente com a elegância de uma mulher colada com super bonder.
Apressei o passo — o prédio da Lancaster estava logo ali, reluzente, me encarando com desdém. O sinal de pedestres já estava fechado, mas minha pressa era maior do que meu amor-próprio. E do que o bom senso também.
Corri.
Foi aí que tudo aconteceu rápido demais.
Um carro preto de luxo virou a esquina. Não vinha a mil por hora, mas rápido o bastante para não me ver atravessando fora do tempo regulamentar.
Ouvi o barulho dos freios, um rangido agudo e desesperado.
Depois, um som seco: tump.