Theodoro
Nada como começar o dia com cafeína e uma dose generosa de decepção paterna.
Estávamos naquela cafeteria ridiculamente cara na Paulista, onde o café vem servido numa xícara tão pequena que parece saída de uma casa de bonecas. Sentado à minha frente, com sua elegância artificial e olhar de executivo veterano, estava Arthur Lancaster: meu pai, meu chefe, e o maior empecilho da minha sanidade.
— Eu aprovei o contrato com a Solari Engenharia — ele disse, casual, como quem comenta sobre o tempo.
Quase cuspi o café.
— Você o quê?
— Assinei ontem à noite. Eles aceitaram nossos termos. Negócio fechado.
Senti o estômago virar.
— Eu já tinha vetado aquele contrato, Arthur. A Solari está com três processos de corrupção em andamento. Lavagem de dinheiro, superfaturamento em obras públicas… Você acha que isso não vai respingar em nós?
Ele deu um gole no expresso, indiferente.
— São apenas acusações. Nada foi provado.
— Ah, ótimo. Vamos abrir as portas para qualquer mafioso com terno bem passado, desde que ainda não tenha sido condenado? — retruquei, sarcástico. — Devíamos colocar isso no slogan da empresa: “Lancaster Corporation — ética é só um detalhe”.
Arthur pousou a xícara com calma. Aquela calma odiosa que ele usava quando sabia que tinha ferrado tudo, mas não pretendia recuar.
— O mundo dos negócios é feito de riscos, Theodoro. Você é inteligente, mas ainda pensa como um garoto idealista.
Me levantei. Rápido. A cadeira quase tombou.
— Eu penso como alguém que não quer o nome da empresa manchado por causa de um acordo podre. Mas parece que isso não te incomoda desde 1995.
— Baixa a voz.
— Não. A única coisa que vou baixar é o nível, se continuar me tratando como se eu fosse um estagiário.
Peguei meu paletó da cadeira e o vesti com movimentos secos.
— Faça o que quiser, Arthur. Já vi que sua prioridade não é a integridade da empresa. É o maldito lucro.
Saí do café como uma tempestade. Se ele chamou meu nome, não ouvi. E se ouvi, ignorei.
A avenida estava movimentada, mas eu andava feito um touro solto, sem me importar com quem vinha na frente. Pisando firme, bufando, repassando mentalmente cada detalhe daquele contrato nojento.
Fiz questão de bloquear o projeto. Estudei cada linha. Apresentei alternativas. Mostrei as falhas. E, no fim, ele simplesmente... ignorou. Como sempre.
Covarde.
Arrogante.Irresponsável.Estava tão tomado pelos próprios pensamentos que não percebi a mulher se aproximando.
Foi tudo rápido. Um puxão repentino no braço e meu instinto de defesa entrou em ação.
— Está maluca? — gritei, virando bruscamente e fuzilando com o olhar a mulher que tinha se agarrado em mim como se eu fosse um poste de esquina.
Ela ofegava, claramente sem graça.
— Desculpe — disse rápido. — Meu salto quebrou, e o reflexo foi me segurar na primeira coisa que vi.
Olhei da minha manga amassada até o sapato assassinado no pé dela.
— Como se eu fosse um poste qualquer — resmunguei, ajeitando meu terno impecável como se ela tivesse me contaminado com uma doença de pobre.
Ela me encarou com desgosto.
— Nossa. Grosso — murmurou, mais para si mesma do que para mim.
Mas eu ouvi. Claro que ouvi.
Parei. Virei o rosto por sobre o ombro e disse, amargo como a porcaria daquele café:
— Grosso? Grosso é a cabeça do meu pau.
Dei mais um passo e nem olhei para trás. Se ela ficou chocada, irritada, impressionada ou tudo isso junto, não me importava. Aparentemente, o universo tinha decidido me testar hoje.
O semáforo de pedestres ficou verde. Atravessei sem diminuir o passo, sentindo o calor do asfalto subir pelas solas dos sapatos.
Entrei no saguão do prédio da Lancaster Corporation como se o chão fosse meu — e era.
Passei direto pela recepção, como sempre. Se alguém tentou me dar bom dia, espero que tenha guardado o esforço para alguém que se importa.
No elevador, apertei o botão do andar executivo com força. A mulher da calçada ainda martelava na minha cabeça.
“Desculpe, meu salto quebrou…”
Problema meu? Não.
Problema dela? Com certeza.
As portas do elevador se abriram com um ding irritante. Saí como um general em campo de guerra. E claro…
Recepção. Vazia.
Trinquei os dentes.
— Fantástico. Mais um dia sem secretária — murmurei, olhando a cadeira vazia com desprezo.
O RH ia se ver comigo.
Era inadmissível um CEO não ter ninguém para segurar a agenda, filtrar ligações e evitar que malucas de salto assassino aparecessem no seu caminho.
Mas tudo bem. Já estava irritado mesmo. Uma reuniãozinha com o RH ia ser só mais uma vítima no meu massacre diário.
Entrei na minha sala e fechei a porta com um empurrão seco. O som da madeira batendo foi a única coisa minimamente satisfatória naquela manhã infernal.
Uma semana.
Sete dias úteis de caos, papéis perdidos, reuniões esquecidas e café frio. Tudo por conta de uma vaca incompetente que tive o desprazer de contratar como secretária.
Era bonita. Tão bonita quanto burra.
Confundiu um memorando com uma proposta de fusão e quase enviou um relatório confidencial para a imprensa. Quando a confrontei, ela riu. Riu. Como se meu departamento fosse um stand-up corporativo. Dei dez minutos para ela arrumar as tralhas e sumir.
Desde então, minha agenda parecia uma gincana de surpresas desagradáveis. Tinha reunião com o conselho ontem? Ótimo, não fui. Almoço com um potencial investidor? Cheguei quarenta minutos atrasado e com molho de macarrão na camisa.
E hoje? Hoje era só mais um capítulo do livro da minha desgraça pessoal.
Me sentei na cadeira de couro, encostei a cabeça e fechei os olhos por cinco segundos.
Foi então que ele tocou.
O telefone.
O maldito telefone da minha mesa.
Quase tive um infarto. Esqueci que aquela porcaria existia.
Atendi como quem aperta o botão de uma bomba:
— Theodoro Lancaster — grunhi.
— Bom dia, sr. Lancaster — era a voz da chefe do RH, Natália. Animada demais para meu gosto. — Conforme combinado, das quinze candidatas que se apresentaram para a vaga de secretária executiva, quatro foram aprovadas para a última etapa.
— Última etapa? — perguntei, já sentindo o azedume subir pela garganta.
— A entrevista com o senhor, claro. Estão subindo agora mesmo.
— Como é que é? — comecei a me levantar, pronto para cancelar aquele circo.
Mas antes que eu pudesse sequer xingar o universo, bateram na porta.
— Sr. Lancaster? — uma mulher que deveria ser do RH apareceu com quatro mulheres atrás dela.
Senti um calafrio.
Elas entraram, cada uma carregando um currículo, um sorriso forçado e um perfume diferente.
Fechei os olhos por um segundo, respirei fundo e me preparei para a tortura.
— Podem sentar — disse, apontando para as quatro cadeiras em frente à minha mesa.
Comecei com a primeira. Um penteado que parecia ter sido feito num furacão, unhas vermelhas chamativas, e um blazer rosa que doía nos olhos.
— Seu nome? — perguntei, sem tirar os olhos do papel.
— Vanessa, senhor. Sou formada em administração, com especialização em gestão de tempo e...
Ela falava como se estivesse em um comercial de creme dental. Fiz uma nota mental: Provavelmente vai marcar manicure no meio do expediente. Não serve.
A segunda tinha um ar blasé, como se estivesse fazendo um favor ao universo por estar ali. Olhei o currículo. Tudo em inglês. Até o endereço de e-mail.
— Sabe digitar rápido? — perguntei.
Ela franziu o nariz.
— Depende. QWERTY ou AZERTY?
Jesus amado. Próxima.
A terceira parecia uma criança tentando brincar de adulta. Nervosa, suando, tropeçou nos próprios pés. Quando eu a interrompi no meio de uma frase para corrigir um erro de concordância, o olho dela começou a lacrimejar.
— Está chorando? — perguntei, já enojado.
— Não... é... é só o ar-condicionado. Tenho alergia.
Ah, ótimo. Uma secretária alérgica ao ar condicionado. Isso que preciso: uma bomba-relógio biológica do meu lado.
A última era a mais normal. Ou pelo menos fingia melhor. Camisa branca impecável, cabelo preso, voz firme. Mas assim que mencionei a palavra "pressão", ela arregalou os olhos.
— Você lida bem com situações de estresse? — perguntei, encarando-a.
Ela hesitou. Um segundo. Dois.
Tempo demais.
Essa também não serve.
As quatro me encaravam como galinhas na fila do abate. Me levantei.
— Obrigado pela presença. A empresa entrará em contato.
Próxima fase, talvez um milagre.
Elas saíram. Algumas constrangidas. Outras claramente com raiva. Eu preferia o desprezo ao chororô.
Fechei a porta devagar. Voltei para a cadeira.
Que bela merda.
Peguei o telefone.
— Natália? Manda mais candidatas. Essas quatro pareciam figurantes de sitcom ruim.
Desliguei.
Eu ainda ia acabar tendo que contratar um robô. Um robô teria menos chiliques e, com sorte, saberia usar o Outlook.
Mas pior do que qualquer uma daquelas candidatas, era saber que Rafael estaria de volta à empresa até o fim da semana.
Meu pai ia me pagar por isso.
Ah, se ia.
Eu estava afundado em meio à minha agenda — uma pilha de compromissos que mais parecia uma bomba-relógio — tentando lembrar se tinha reunião com o conselho ou só com aquele grupo de investidores chatos. A cabeça latejava, os papéis me encaravam como se zombassem da minha incompetência temporária sem secretária, e eu já pensava seriamente em fugir para almoçar só para tentar manter a sanidade.
Foi quando a porta da minha sala se escancarou sem cerimônia — coisa que, para mim, era uma heresia, um crime contra a ordem — e meu pai entrou, sem nem ao menos bater. Eu poderia até perdoar se ele fosse um anjo, mas era Arthur Lancaster, o mestre do timing ruim e da invasão de privacidade.
— Theodoro — ele anunciou, como se tivesse entrado no palco principal da Broadway.
Atrás dele, tropeçando e tentando manter alguma dignidade, vinha uma mulher. Roupa suja, amassada, que parecia ter passado o dia numa tempestade — ou, sei lá, numa ressaca daquelas que só o inferno explica. Os pés, descalços, faziam um contraste digno de cena de filme de arte, e os cabelos, castanhos com mechas roxas nas pontas, estavam um desastre só — emaranhados, rebeldes, absolutamente fora do padrão Lancaster.
— Quero lhe apresentar a esta moça — disse Arthur, apontando para ela com a tranquilidade de quem fala do clima. — Leydi Dayane Moura, sua nova secretária.
Eu me levantei num salto, a voz saindo mais explosiva do que o planejado:
— Você está de brincadeira, né?
Arthur não pareceu nem ligar para meu tom. Ele sempre teve o dom de ignorar minhas explosões com a elegância de um rinoceronte numa loja de porcelanas.
— Leydi, esse é meu filho. Theodoro. Tenho certeza de que vão se entender.
Eu olhei para ela dos pés à cabeça, revirando mentalmente a lista de insultos possíveis: “roupa suja, cabelo bagunçado, pés descalços... essa aqui não serve nem pra limpar a porta do escritório”.
— Ela? — eu disse, com uma cara que denunciava todo o meu nojo disfarçado de incredulidade. — Você quer mesmo que eu trabalhe com isso? Isso aqui parece mais uma participante do ‘Sobreviventes’ do que uma secretária executiva.
Leydi evitava olhar nos meus olhos, tentando não morder o lábio, enquanto eu despejava minha avaliação fria e cruel, como se fosse o dono da verdade e do bom gosto.
— Não é questão de aparência, claro — menti com sarcasmo — é só que... você não tem cara de alguém que sabe usar um computador, organizar uma agenda ou, sei lá, atender um telefonema sem derrubar o telefone no chão.
Arthur me lançou um olhar que, se fosse possível, faria a luz apagar na sala.
— Theodoro, ela está contratada, ponto final.
Me joguei na cadeira, batendo os dedos na mesa com um ritmo impaciente.
— Isso vai ser um desastre.
— Talvez — respondeu ele, já saindo — mas pelo menos agora sua agenda não vai mais explodir na sua cara.
Enquanto a porta se fechava, fiquei encarando Leydi, que ficou parada olhando para o meu escritório, tentando parecer menos deslocada.
Pelo visto, minha semana só piorou.