Nápoles- Igreja de Santa Concezione
Eles diziam que o casamento era o dia mais importante da vida de um homem. Talvez para um homem comum. Para mim, era só mais uma humilhação, um teatro bem ensaiado, onde o figurino me apertava, o altar me sufocava, e todos os rostos ao meu redor fingiam respeito, quando na verdade, mal conseguiam disfarçar o escárnio. O salão da igreja era escuro, frio como mármore antigo, com vitrais altos e um altar adornado com velas. Os poucos convidados estavam em silêncio, tradição, sigilo, honra. Os três pilares do que chamam de união na máfia. Homens engravatados, mulheres em vestidos discretos, guardas armados disfarçados de seguranças do evento. E meu pai, sentado na primeira fileira, com aquele olhar de missão cumprida, como se finalmente tivesse conseguido me dobrar. Eu estava de pé no altar, os dedos trincando sob as mangas do terno. A cabeça ainda latejava da ressaca. Podia sentir o gosto do álcool misturado com desprezo na garganta. Meus irmãos estavam próximos, calados, respeitando a encenação, como bons soldados da família. Então as portas se abriram. E lá estava ela. Sorrindo. Sorrindo lindamente. A raiva subiu pelo meu estômago como um soco. Porque ela tinha que estar sorrindo? Ela não me conhecia e nem eu sabia quem ela era. Ela caminhava devagar, com um vestido simples, branco, sem brilho, como ela. Pelo menos era oque eu pensava na hora. Era magra, muito magra. Os braços pareciam frágeis, quase infantis. O rosto? Lindo. Mas tão doce que me causava incômodo. Ela parecia… Limpa demais para estar ali. Ruiva. A porra ainda era ruiva. Era o tipo de beleza que chamava atenção mesmo em silêncio. Mas oque mais me incomodava não era isso, era o olhar, a maneira como ela me encarava. Como se aquilo fosse um conto de fadas. Como se me conhecer fosse um presente. E eu? Só queria sair dali. — Ela está sorrindo — murmurei, entre dentes, para meu irmão ao meu lado, que não respondeu. — Isso aqui é um casamento ou uma piada? A música cessou. Ela parou ao meu lado. A cerimônia começou. O padre, escolhido a dedo pela familia, fez os votos em latim. Palavras velhas, sagradas, que caiam como facas afiadas em cima da minha liberdade. Os dois seguranças mais brutamontes da casa estavam nas portas da igreja. E mesmo se não estivesse… eu não fugiria. Não por covardia, mas por cansaço. Ela ainda sorria. Eu olhei de relance. O vestido caia solto sobre o corpo magro. Ela mal piscava, olhando o altar, o padre, meu pai… como se estivesse finalmente vivendo. Não conseguia entender. Porque ela estava feliz? Ela não sabia com quem estava se casando. Ela não fazia ideia de quem eu era. Ou será que sabia? Quando disseram que seria com uma menina do convento, imaginei algo parecido com isso. Mas imaginar não é o mesmo que ver. E agora, vendo, eu sentia um peso ainda maior. Aquilo era crueldade. A inocência dela quase gritava. Gritava tanto que fazia minha mente se contorcer de raiva. Me fazia pensar que, de todos os castigos que meu pai poderia me impor, esse talvez tivesse sido o mais eficaz: me casar com uma menina que parecia pura demais até para um beijo. — Dante Bellanti, aceita Serena como sua legítima esposa? Engoli seco. Serena. O nome caiu como ironia. Serena… Tinha até um som limpo. Soava como paz, como pureza. Como tudo que eu nunca fui e nunca quis ter por perto. Combinar aquele nome com o meu sobrenome era como uma piada, e não das boas. Serena Bellanti. Já dava para sentir o escárnio nos jornais. A virgem da igreja casando com o demônio da máfia. Só podia ser ideia do meu pai. O olhar da minha mãe me queimava da primeira fileira. Ela acenou de leve, como se dissesse: “Diga sim, Dante. Seja homem.” O “Sim” saiu entalado, mas saiu. E quando o dela veio, doce como água de fonte, quase me senti um maldito. Beijei a sua testa, porque não consegui tocar os lábios, estavam limpos demais. Não seriam os primeiros que eu destruiria. Mas ela ainda sorria. É isso, por algum motivo, me dava vontade de rir. Ou de chorar. Descemos do altar sob aplausos mornos. O salão era pequeno, fechado, reservado para esse tipo de cerimônia íntima ou, no caso, para essa bizarrice que chamaram de casamento. Minha mãe assumiu o controle. A figura elegante, o sorriso treinado. Pegou Serena pela mão e a apresentou a cada um dos presentes. — Essa é a tia Constanza, irmã do seu sogro. Esse é seu primo Eduardo, advogado da família. Aqui está Lídia, minha sobrinha. Vai te ajudar com oque você precisar. Ah, e aquele é seu cunhado, Mateo. A garota sorria. Sorria como se estivesse ganhando o mundo — e não sendo vendida pra ele. Me dava náuseas. Observei tudo em silêncio, de mãos nos bolsos, o olhar vago. Até meu pai surgir, o cenho fechado, o passo firme. — Dante, comigo. Agora. Fui atrás dele por um corredor estreito, até uma porta lateral que dava aos fundos do altar. Quase uma passagem secreta. Ele se virou e foi direto ao ponto. — Vocês vão para casa de campo hoje. Tudo preparado. O motorista vai levar você daqui a pouco. — Como assim, casa de campo? Eu tenho compromissos, trabalho. — resmunguei tentando manter o controle. Ele levantou a mão, me cortando. — Segunda feira você está de volta. Isso aí que você tem que fazer com a menina é rápido. E necessário. Eu o encarei com repulsa. — Isso é doentio. Eu nem conheço a garota. Mal falei com ela. Nem sei oque ela gosta de comer, de vestir… Eu não tenho intimidade nenhuma com ela. E você quer que eu… — Vai dormir no mesmo quarto. — A voz dele foi firme. — Vai agir como marido. Vai se comportar como um homem de familia Bellanti. E vai me poupar do constrangimento de ver a mídia dizendo que meu filho largou a noiva na primeira noite. — Isso é um absurdo. — senti a raiva me subir pelo peito, queimando. — Isso não é casamento. Isso é uma transação. Ele deu um passo a frente, me encarando como se quisesse enfiar os punhos no meu orgulho. — Foi assim comigo e com a sua mãe. Foi assim com meu pai e minha mãe. Foi assim com seus tios. Seus primos. Amor é luxo. Casamento é negócio. — Porque não me casou com alguém de poder, então? Com uma mulher de outra família influente? Ele deu um riso seco, quase zombeteiro. — Porque você não consegue manter o maldito Pinto dentro das calças, Dante. — ele falou com os dentes cerrados. — Se eu colocasse você nos braços de uma filha de mafioso de verdade, era capaz da família dela mandar você pro fundo do mar antes mesmo da lua de mel. Serena foi a escolha certa. Pura, moldavel… e sem ninguém pra brigar por ela. Engoli seco. Era nojento. Toda aquela construção, aquela manipulação. Ele me lançou um último olhar antes de virar as costas. — Fim de papo. Vai se acostumando, agora você é um homem casado. Fiquei ali por um momento. O peso do anel recém colocado na mão esquerda parecia gritar no meu dedo. Um símbolo de algo que eu não queria. De algo que me foi enfiado goela abaixo. E, pior… de algo que, agora, era meu dever honrar.