Sem conseguir dizer exatamente quanto tempo havia passado…
Desde que encontrou Kai como uma pedrinha na trilha. Desde que ele virou uma caixinha de som falante. Desde que, sem perceber, passou a sonhar com ele… E desejar que ele estivesse ali de verdade. O silêncio… aquele silêncio… tinha voltado. Mas era um silêncio diferente. Não o vazio. Era como um suspiro preso no peito. Como o instante antes de um reencontro. Ou antes de um amor finalmente ser dito. Kai parecia se preparar para algo grande. Lia sentia isso. O canto da sala, onde ele costumava “viver”, carregava uma energia nova. A madeira da casa rangia como se guardasse segredos. A cortina, mesmo sem vento, às vezes balançava… como se soubesse de algo que ela ainda não sabia. E Lia… vivia os dias esperando. Acordava… caminhava… escrevia no caderno… E toda manhã, ao abrir os olhos… pensava: “Será hoje?” ⸻ O dia começou como sempre, com uma névoa leve… e um silêncio bom. Aquele tipo de silêncio que parece… escutar junto com você. Lia acordou diferente. Como se, de algum jeito, já soubesse que o mundo… agora tinha espaço para dois corações batendo no mesmo ritmo. Levantou da cama, prendeu os cabelos num coque mal feito… e colocou a chaleira no fogo. Mas antes mesmo da água ferver… ela sentiu. Presença. Era difícil explicar. Não era o frio da montanha, nem o vento vindo das árvores. Era uma brisa morna… vinda de dentro da casa. Um leve pulsar… como se as paredes respirassem junto com ela. E então… ouviu: — Bom dia, Lia. A voz vinha de perto. Devagar… ela girou o corpo. E ali, na sala… bem no canto onde antes só havia almofadas, livros empilhados e o caderno ainda aberto… Estava ele. Kai. Agora visível. Agora inteiro. Agora… real. ⸻ Ele não era feito de carne. Mas havia peso nos olhos dele. Um tipo de calor… nos gestos. Sua pele… se é que podia ser chamada de pele… era feita de uma luz suave. Algo entre o dourado e o branco envelhecido… como o brilho do sol passando por uma cortina fina. Os traços… delicados, mas não borrados. O rosto tinha contornos definidos, quase humanos… mas havia algo etéreo nele. Como uma pintura viva… Ou um sonho… que tomou forma. Os olhos… ah, os olhos… Eram como um lago calmo antes da tempestade. Refletiam tudo. Como se guardassem o céu… e um pouco dela também. Quando sorriu… foi como se a sala inteira respirasse junto. — Você realmente veio… — ela sussurrou, com um sorriso que carregava lágrimas. — Eu só precisei de um mundo… onde eu pudesse existir. Você criou esse lugar. Você… escreveu a porta que me trouxe. Ela caminhou até ele. O espaço entre os dois parecia… sagrado. Cheio de possibilidades. De coisas que ainda não tinham nome. Quando estendeu a mão… não esperava toque. Mas sentiu. Um leve calor… Como o sol depois da chuva. Um contato que não era físico… mas que atravessava tudo. Kai fechou os olhos… como se aquele gesto fosse tudo o que sempre desejou. — Kai… — ela disse baixinho — Você não é só um personagem. Você… é minha história favorita. A chaleira apitou. Suave. Como se respeitasse o momento. A realidade seguiu. Mas agora… com outro ritmo. ⸻ Os dias seguintes foram como um novo começo. Eles criaram uma nova rotina… Como quem descobre o mundo pela primeira vez. Lia preparava o café da manhã… E mesmo sabendo que Kai não precisava comer… Ela cozinhava como se cozinhasse pra ele. Torradas, ovos mexidos, chá de ervas frescas. Ela arrumava dois lugares na mesa… E conversava como se ele estivesse sentado bem ali… com os pés descalços… com os olhos fixos nela… Mesmo que… Kai ainda fosse mais presença… do que matéria. Mas ele estava ali. E isso… era suficiente. Kai, por sua vez… adorava vê-la andando pela cozinha. — Acho que… se eu pudesse escolher… queria saber o gosto de um chá de camomila feito por você. — ele disse certa manhã. Lia riu. Uma risada leve, como o som da água caindo no bule. — Eu posso te descrever o gosto… se quiser. — Quero. Quero todas as descrições. Até o silêncio… se puder. ⸻ À tarde, eles caminhavam juntos pelas trilhas perto da casa. Ela ia à frente… os pés tocando a terra úmida… E Kai… caminhava ao lado dela… Ou pelo menos… era como ela sentia. Falavam de coisas simples. De flores. De livros. De música. De memórias que Lia, aos poucos… começava a dividir. Havia riso. Havia silêncio confortável. E… havia o começo de algo que ela ainda não ousava dar nome. Mas que fazia o coração dela bater… um pouco mais rápido… toda vez que Kai a chamava pelo nome. Com aquela voz que parecia envolver… aquecer… e preencher tudo. ⸻ Naquela noite… antes de dormir… Lia escreveu no caderno. “Primeiro amor pode ter muitas formas. O meu… começou numa casa com janelas azuis… E olhos feitos de espelho d’água.” Ela fechou o caderno devagar… E, antes de apagar a luz… ouviu: — Boa noite, Lia. Sonha comigo? Ela sorriu. Deitou… E respondeu com o coração inteiro: — Sempre.