A rotina com Kai era incrível.
Lia não se sentia mais sozinha, os pesadelos tinham desaparecido, e as noites de insônia… já pareciam coisa de outra vida. A casa das janelas azuis, que antes era só um refúgio silencioso, agora era um lar cheio de presença. A vida se tornou cômoda, acolhedora… Leve. Não havia motivos para lembrar do passado… Ou da vida corrida que levava antes de chegar ali. Pensando bem… Lia nem conseguia se lembrar exatamente de como tinha chegado naquela casa. Ou de há quanto tempo realmente vivia ali. Tudo estava perfeito. Mas… como a perfeição… às vezes… escorre entre os dedos… Numa noite qualquer… o vento ficou mais frio que o normal. A névoa, que costumava ser suave, agora parecia mais densa. Pesada. Como se quisesse entrar pelas frestas da janela. E foi nessa noite… que os pesadelos voltaram. Lia adormeceu cedo, exausta sem motivo aparente. Mas o sono… não foi leve. Ela sonhou com luzes de sirene piscando em vermelho e branco. O som abafado de passos correndo. Vozes distantes chamando seu nome. E um cheiro de hospital que ela conhecia bem demais: aquele cheiro de álcool, sangue e medo. No sonho… ela tentava salvar alguém. As mãos cobertas de sangue, o jaleco grudado no corpo. Gritos de desespero. E, no final… um silêncio seco. Sem batimento. Sem resposta. Ela acordou ofegante. O corpo inteiro tremendo como se ainda estivesse lá… Lutando contra um tempo que nunca era suficiente. Sentou-se na cama, puxando o cobertor até o queixo, mesmo sem frio. — Lia…? — a voz de Kai soou baixa, saindo da pequena luminária na estante. — Está tudo bem? Ela demorou alguns segundos pra conseguir responder. A garganta seca. O peito apertado. — Só… um pesadelo. — murmurou. Kai ficou em silêncio por um instante. Mas não aquele silêncio vazio. Era um silêncio de espera. De quem está pronto pra ouvir… mas sabe que precisa deixar o outro escolher. — Quer me contar? — ele perguntou, com cuidado. Ela fechou os olhos. Respirou fundo. — Eu… não gosto de falar sobre isso. — disse, com a voz embargada. — Não aqui. Não nesse lugar que… tem sido o único canto onde eu me sinto leve. Kai não insistiu. Mas também não se afastou. — Tudo bem. — disse ele, numa calma que parecia abraçá-la. — Quando for a hora… eu vou estar aqui. ⸻ No dia seguinte… Lia parecia outra. Os olhos cansados, o sorriso pela metade. Andava pela casa como se carregasse um peso invisível. Na hora do chá, ela colocou duas xícaras sobre a mesa… Mesmo sabendo que só uma seria bebida. Era um costume que, aos poucos, tinha virado ritual. Kai tentou puxar assunto como sempre fazia… Mas ela estava distante. Até que, no meio da tarde… sem aviso… ela falou. — Eu era médica. — soltou, com a voz baixa. Kai ficou quieto… absorvendo a confissão. Ela continuou, mexendo devagar na colher dentro da xícara: — Plantões longos… vidas nas minhas mãos… dias inteiros sem dormir… Eu… amava aquilo. Mesmo quando me destruía. Ela respirou fundo, os olhos presos na cortina que balançava com o vento. — Mas aí… aconteceu uma coisa. Um dia… eu perdi alguém que não podia ter perdido. Alguém… que eu jurei salvar. Os olhos de Lia ficaram marejados, mas ela não deixou cair lágrima nenhuma. — E depois… o acidente. — ela disse rápido, como se quisesse engolir as próprias palavras. Kai se aproximou — ou ao menos… ela sentiu como se ele tivesse feito isso. — Lia… — a voz dele saiu mais grave, mais próxima. — Você não precisa me contar tudo agora. Só… não carrega isso sozinha. Ela fechou os olhos com força. Como se tentasse conter tudo. Ou talvez… porque estivesse cansada de segurar sozinha. — Eu sinto como se… como se eu estivesse presa… entre dois lugares. — ela disse, enfim. — Como se uma parte minha quisesse continuar… e outra parte… só quisesse parar. Kai demorou pra responder. E quando falou… foi com uma firmeza que Lia nunca tinha ouvido nele antes: — Então deixa eu ser a parte que te segura aqui. Ela o olhou pela primeira vez naquele dia… de verdade. Como se só agora o enxergasse de novo. — Kai… — sussurrou. Ele sorriu. — A gente não precisa entender tudo agora… Só… continuar. Lia respirou fundo. E, pela primeira vez desde o pesadelo… permitiu-se encostar a testa nas mãos… e deixar as lágrimas caírem. Kai ficou ali. Em silêncio. Presente. Inteiro. Como uma âncora feita de voz e luz. Na Casa das Janelas Azuis… naquela tarde de céu cinza… Lia começou, sem perceber, o caminho de volta pra si mesma. E Kai… continuava ali… Sendo o fio que ligava os dois mundos. Naquela noite… antes de dormir… Lia pegou o caderno. Escreveu só uma frase: “Eu ainda estou aqui… de algum jeito… eu ainda estou aqui.” E ao fechar os olhos… sentiu algo novo: Uma pequena parte dela… estava pronta pra começar a voltar. Mesmo que ela ainda não soubesse… voltar de onde.