Escritório da sede – Ainda a noite, instantes após o "chamado"João ajeitou a gola da camisa amassada, passou a mão pelos cabelos e abriu a porta com o máximo de naturalidade que conseguiu reunir. Amanda estava atrás dele, já sentada à mesa, fingindo rever um dos relatórios — impecável como se nada tivesse acontecido.Ana entrou com a postura ereta, olhos atentos, braços cruzados. Trazia consigo uma pasta preta fina, documentos administrativos. Mas o olhar... o olhar percorreu o ambiente como se farejasse a verdade.— Interrompi alguma coisa? — perguntou com um leve levantar de sobrancelha, o tom suave demais para ser despretensioso.João respondeu com um sorriso sem graça:— Só estávamos resolvendo uns detalhes da planilha de custo do novo lote de reprodutores.Ana não disse nada de imediato. Apenas se aproximou da mesa, depositou os documentos com calma e olhou direto para Amanda.— Amanhã cedo temos reunião com o contador russo e com o representante da Embaixada Suíça. Preciso que
A noite seguiu embalada por músicas suaves, vozes em conversas calorosas e o tilintar de taças brindando aos bons momentos. Os empregados da fazenda haviam preparado uma ceia impecável: pratos tradicionais russos misturados com receitas suíças e toques da culinária brasileira que Amanda fizera questão de incluir — um símbolo sutil de suas raízes múltiplas e do quanto ela pertencia, com orgulho silencioso, àquela casa, àquela história.Bruno, elegante, movia-se entre os convidados com naturalidade, mas seus olhos sempre voltavam para Amanda. Ele percebia algo ali — algo que os outros fingiam não ver, ou não sabiam nomear. José, atento, o chamou para junto da lareira.— Você ainda é o mesmo, Bruno? — perguntou, com um sorriso cordial, mas os olhos faiscavam com aquela sabedoria amarga que os velhos adquirem.Bruno soltou uma risada curta.— Talvez um pouco mais ambicioso. Um pouco mais experiente.— E um pouco mais interessado em... Amanda?Bruno não respondeu. Apenas ergueu a taça, bri
O jantar chegara ao fim entre louvores à família, pratos vazios e taças quase secas. As risadas ainda ecoavam pelos salões da sede principal, como ecos de um mundo que fingia ignorar o que se passava nas sombras. Mas os olhos de João não viam nada disso. Eles viam apenas Amanda.Ela conversava com Ana e Otávio, a postura impecável, os gestos calculadamente suaves, o sorriso que encantava — e ao mesmo tempo mantinha os outros a uma distância segura. Uma muralha feita de charme e precisão. Mas João a conhecia. Conhecia o tremor leve em seus dedos quando estava inquieta. Conhecia a pausa prolongada antes de um sorriso verdadeiro. E naquela noite... havia algo diferente. Uma tensão contida, como um fio prestes a romper.José se aproximou do irmão e murmurou com aquele tom de quem disfarça preocupação com ironia:— Vai com calma, maninho. Ela não vai fugir.João forçou um sorriso. Mas seus olhos, duros e escurecidos, diziam outra coisa.— Eu só preciso falar com ela.E então foi.Atravesso
O silêncio se tornou quase cruel.E então, como se tudo mais fosse apenas ruído distante, João a tomou nos braços. Amanda, atônita, não reagiu — ou reagiu rendendo-se. Deixou-se levar como quem cruza um rio sem saber se a margem oposta existe.Um murmúrio percorreu o salão como o vento que anuncia a tragédia.— Isso... não vai acabar bem — sussurrou Carla, as mãos trêmulas.— Já passou do ponto de retorno — respondeu o marido, os olhos fixos nas escadas por onde João subia.Ele caminhava como um usurpador que já não teme ser expulso do trono. Como um homem que carrega seu pecado nos braços como um troféu sagrado.Ao chegar no quarto, trancou a porta com a mão firme. O vento batia contra as janelas, e a neve escorria pelos vidros como lágrimas do céu.Colocou Amanda sobre a cama — não com delicadeza, mas com reverência bruta. Um ato de amor... e de ruína.Aproximou-se, os olhos ardiam como fogo sob a neve.— Hoje... quem te doma sou eu, Amanda. Meu amor proibido.Ela o olhou, os cabelo
Escritório da sede – minutos depois da reunião no café da manhã.A lareira estalava com o fogo baixo, como se até as chamas sussurrassem medo da decisão que pairava naquela sala. Do lado de fora, a neve se acumulava nas janelas, formando molduras geladas para um mundo prestes a ruir.Augusto estava de pé, as mãos às costas, o olhar fixo no nada branco da paisagem russa. Dentro de si, a guerra já estava vencida. Faltava apenas anunciar o veredito.Ana permanecia sentada na poltrona de couro escuro, impecável. O vapor da taça de café subia lento, mas os olhos dela — oh, os olhos — eram navalhas de gelo.— Isso não é só paixão, Ana. É rebeldia. É um desafio ao nome que construímos — disse Augusto, a voz rouca de décadas de comando.— Não, Augusto. — Ana respondeu sem hesitar, cruzando as pernas com elegância aristocrática. — Isso é inevitável.Ele virou-se, levemente, surpreso com a serenidade na voz da esposa.— Inevitável?— Amanda nunca foi qualquer uma — ela disse, lentamente, como q
Sede principal – Biblioteca. Noite de inverno, fogo alto na lareira.O silêncio dentro da biblioteca era sufocante. Do lado de fora, a neve tombava espessa sobre os vidros, como se quisesse apagar o mundo. Ana estava ausente. José permanecia calado, escorado em uma das estantes, com o olhar fixo nas mãos cruzadas. Amanda e João estavam de pé, frente a frente com Augusto Duarte — que parecia mais uma estátua eslava do que um homem.— Você não pode fazer isso — disse Amanda, rompendo o silêncio com a voz firme, mas carregada de emoção. — Me mandar para outro país como se eu fosse uma peça fora do tabuleiro.João completou, o peito arfando, o rosto vermelho.— Jamais irei para a Suíça. Eu sou Duarte tanto quanto você. E se pensa que vai me separar da Amanda como se fôssemos crianças...Augusto deu um passo à frente. A mão pesada bateu sobre a mesa de carvalho com tal força que a xícara de chá de Ana tremeu, rachando o pires.— Quem manda nesta família sou eu!A voz ecoou pelas paredes co
Londres – Apartamento de Amanda. Tarde cinzenta.A luz entrava oblíqua pelas janelas altas do flat em Mayfair. O céu inglês, perpetuamente coberto de nuvens, refletia com fidelidade o estado de espírito de Amanda.Sentada diante da lareira acesa, com uma taça de vinho não tocada ao lado, ela observava os e-mails no tablet — contratos, fusões, números. Era isso que Amanda havia se tornado: um dossiê ambulante de eficiência e poder. Não se permitia distrações. Não se permitia fraquezas.O celular vibrou. Ana.Amanda respirou fundo. Atendeu.— Alô.— Oi, filha... como você está? — A voz de Ana era baixa, delicada. Cansada.Amanda respondeu de forma automática, sem emoção.— Estou bem. E José e Sofia? Soube que Sofia está grávida de outra menina.— Sim — respondeu Ana com um pequeno sorriso que não foi ouvido. — Se chamará Carolina. Nina está ansiosa pra conhecer a irmã.Silêncio.— E José? — perguntou Amanda, com o tom leve, mas distante.— Está bem, filha... trabalhando bastante com seu
Varanda da fazenda Duarte – Tarde fria.João estava imóvel. O vento varria a varanda da sede, mas ele não sentia nada. O corpo presente, a alma dispersa — ausente como quem já havia sido sepultado vivo.As mãos estavam frias, apesar do chá quente que Clara lhe entregara. Ela sorria com doçura. O tipo de doçura que sufoca."É o certo, João", diziam todos.Seu pai. Seu tio Afonso pai de Clara. Até Ana silenciara diante da imposição.O nome Duarte precisava sobreviver. O escândalo precisava ser abafado. A aliança com Clara — filha perfeita, prima ideal — seria o selo de honra.Honra.A palavra soava como ferro enferrujado contra os dentes. Ele não queria. Nunca quis. Clara era o passado... Amanda, o abismo que ele escolheu cair.Mas agora, estava de mãos atadas.Augusto batera na mesa dias antes, os olhos em brasas, a voz como um trovão:— Ou você casa com Clara, ou sai desta família sem um centavo, sem um sobrenome, sem um teto para onde voltar.João sentiu o ódio raspar-lhe o peito. N