Fiquei observando Giulia dormir por longos minutos depois de colocá-la na cama. Ela ainda segurava o livrinho novo contra o peito, os cílios longos descansando nas bochechas coradas. Parecia tão em paz que doía saber o quanto essa paz tinha custado caro. Principalmente para ela.Fechei a porta do quarto devagar e desci, sabendo que Isabella ainda estava acordada. O cheiro de chá vinha da cozinha, misturado ao som abafado de louça sendo organizada. O som do cotidiano que, de alguma forma, agora me acalmava.Ela me olhou ao me ver entrar. O cabelo preso em um coque improvisado, uma blusa velha que usava em casa e os olhos — sempre os olhos — atentos, gentis.— Chá? — perguntou, erguendo a chaleira.
A tarde caiu devagar naquele domingo preguiçoso. Giulia dormia há mais de uma hora, depois de correr pelo jardim com a energia de uma criança que ainda não percebe que o mundo pode ser cruel.Eu estava no escritório, revisando alguns documentos que Carmem havia deixado em minha pasta. Ainda era cedo pra retomar compromissos de verdade, mas algo em mim queria me manter ocupado. Ou talvez... apenas distraído.Ouvi passos leves no corredor, e logo depois, Isabella surgiu na porta.— Espero não estar interrompendo — disse, com a voz suave, apoiando-se no batente da porta com um copo d’água na mão. — Você me disse que eu poderia pegar os... livros caso quisesse ler.
O céu de Sevilha estava começando a escurecer, tingindo o fim de tarde com tons alaranjados e suaves. Eu observava pela janela da cozinha o balançar calmo das folhas no quintal, enquanto o vapor da xícara de chá aquecia minhas mãos.Giulia tinha dormido cedo, cansada da agitação dos últimos dias — e talvez também sentindo, ainda que sem entender, o turbilhão que pairava sobre os adultos ao seu redor.Miguel tinha se trancado no escritório depois de colocá-la na cama. Eu sabia que ele precisava de espaço. Talvez eu também precisasse.Mas meu coração estava apertado.Tão apertado que a única coisa que consegui fazer foi pegar o celular, calçar os chinelos e ir até o quarto de hóspedes onde eu dormia — onde, de alguma forma, vinha tentando manter um limite imaginário entre a minha vida e a deles.Sentei na beira da cama, puxei o cobertor sobre os ombros e disquei o número que sempre me dava alguma forma de chão. O número da minha mãe.Ela atendeu na terceira chamada.— Isa? Tá tudo bem,
O cheiro do café ainda preenchia a cozinha quando terminei de colocar a lancheira de Giulia na mochila rosa com detalhes de unicórnios. Miguel tinha saído mais cedo, mencionando uma reunião importante. Eu nem o vi direito — só ouvi a porta se fechando e os passos apressados no corredor. Desde o beijo... as coisas tinham ficado um pouco diferentes. Um pouco mais silenciosas. Um pouco mais carregadas de pensamentos que nenhum dos dois conseguia traduzir em palavras.Mas Giulia não mudava. Ela era o fio de luz em meio ao emaranhado.— Isa, você pode fazer a trança de princesa hoje? — pediu, sentando-se no banco da penteadeira do quarto com a escova já nas mãos.Sorri, pegando delicadamente o pente.— Claro que posso. Mas tem que ficar bem quietinha, princesa.Ela assentiu com convicção e, enquanto eu começava a separar as mechas de cabelo dourado, ela ficou olhando nosso reflexo no espelho.— Isa... — a voz dela veio baixinha, quase como um segredo. — Você vai embora igual a mamãe?A per
A porta da sala de reuniões se fechou atrás de mim com um clique abafado. O som deveria ter me trazido alívio — mais um compromisso encerrado com sucesso — mas tudo o que senti foi o peso crescente do cansaço. Passei a mão pelos cabelos, desfazendo o nó da gravata, e fui direto para o corredor que levava à minha sala.— Senhor Navarro? — A voz de Mariana, uma das assistentes, me interceptou antes que eu girasse a maçaneta. — Desculpe interromper, mas... a babá da sua filha está na recepção.Parei no mesmo instante.— Isabella? — perguntei, sentindo um frio súbito percorrer minha espinha. — Aconteceu alguma coisa com Giulia?— Não, senhor... Pelo menos, creio que não. Tentei dizer que ela poderia voltar mais tarde, mas ela insistiu. Está bastante... abalada.Não hesitei. Meu corpo agiu antes que minha mente acompanhasse.— Mande-a subir. Agora. — Entrei na sala, a adrenalina disparando no peito.Tentei manter a calma enquanto me dirigia à janela, mas não consegui. Algo estava errado. M
O restaurante era aconchegante, de tijolinhos aparentes e com mesas de madeira rústica. Luzes âmbar pendiam do teto como vaga-lumes imóveis, deixando tudo com um ar quase mágico. Miguel me guiou até a mesa, com a mão levemente em minhas costas. Giulia estava com Carmen por algumas horas, o que nos dava um raro tempo a sós — mesmo que fosse só para almoçar.— Esse era o restaurante preferido da minha avó — ele disse, já se acomodando. — A comida daqui é tão boa quanto a dela, o que é dizer muito.Sorri, ainda sentindo o gosto amargo da manhã, mas me esforçando para mergulhar naquele novo ambiente, mais leve, mais simples.— Ela cozinhava bem? — perguntei, tentando puxar conversa.— Fazia um cocido andaluz de fazer chorar.— Então eu estou no lugar certo — brinquei.Ele sorriu, aquele sorriso que fazia o rosto parecer menos cansado e os olhos menos solitários. Passamos um tempo conversando sobre pratos típicos, viagens, e até rimos juntos de uma história em que ele tentava cozinhar par
A casa estava silenciosa, como se soubesse que eu precisava de um pouco de paz. Giulia já tinha subido para o quarto com Isabella, e eu fiquei alguns minutos parado na sala, com as chaves ainda na mão, olhando para o nada. A bolsa da Isa estava encostada no sofá, a de Giulia no chão, com um dos brinquedos escapando por entre o zíper. Um cenário normal. Familiar. Mas havia algo em mim que não era.Sentei-me na poltrona perto da janela. A luz do fim da tarde pintava a sala com tons dourados e quentes. Fechei os olhos e deixei a cabeça tombar para trás. O cheiro da comida ainda estava no ar — um resquício do restaurante em que estivemos mais cedo. Tinha sido um bom almoço. Giulia riu, Isa se encantou com as histórias que contei da minha avó... e eu me peguei observando Isa mais do que deveria. N
Acordei antes do despertador.O céu de Sevilha ainda estava num tom pálido, misturado entre cinza e azul, e a luz fraca que entrava pelas frestas da cortina deixava o quarto com uma tranquilidade adormecida. Giulia dormia no quarto ao lado, respirando devagar como quem não tem pressa de acordar para o mundo.Mas eu já estava desperta — e inquieta.A noite anterior parecia ter deixado uma marca em mim. As palavras de Miguel, a forma como ele me ouviu, os olhos atentos, sem julgamento. E, principalmente, aquele último instante antes da despedida. Aquele quase toque. O silêncio cheio de tudo que não dissemos.Me vesti devagar e fui até o quarto de Giulia. Ela abriu os olhos assi