Ava
“Você vai mesmo usar isso amanhã?”
A voz da minha irmã cortou o silêncio do quarto como uma faca afiada. Eu estava diante do espelho, de lingerie, provando pela milésima vez o vestido de noiva que já não me cabia direito, tentando mentalmente convencer meu corpo a parecer menos… tudo. Menos inchado, menos pesado, menos vergonhoso.
Mas é claro que Scarlett apareceu para me lembrar da realidade. Ela encostou na porta com os braços cruzados e aquele sorriso cínico colado no rosto como batom barato.
Scarlett: “Ava, honestamente, você vai se casar ou ser enterrada viva naquele pano?”
Engoli seco. Virei de lado, tentando ver meu reflexo sob outro ângulo. Ainda era horrível.
Ava: “É o que tem pra hoje. A costureira fez o que pôde.”
Scarlett: “Claro. Milagres não são o forte dela, né?”
Ela riu. Sozinha. Como sempre fazia quando zombava de mim. Eu deveria estar acostumada. Scarlett sempre foi a estrela. A filha perfeita. Magra, alta, com aquele sorriso de comercial de pasta de dente. Não é atriz, mas vive de fingimento.
Scarlett: “Sério… o Brian ainda vai te querer depois de te ver assim? Porque, se fosse comigo, eu largava no altar com gosto. Você parece um balão vestido de noiva.”
A frase bateu como uma bofetada. Mas antes que eu pudesse responder, a porta se abriu mais uma vez. E claro… ela.
Minha mãe.
Sempre com o perfume exagerado, a maquiagem impecável e o veneno nos olhos.
Mãe: “Que gritaria é essa aqui?”
Scarlett: “Só comentando o vestido da Ava. Tá lindo. Se o casamento fosse temático de circo.”
Mãe: “Scarlett…”
Ela disse com a voz doce, mas com aquele olhar cúmplice. Elas se entendiam por olhares. A mãe que sempre me desprezou e a filha que foi moldada para me substituir.
Mãe: “Não seja cruel com sua irmã… pelo menos não em voz alta.”
Riram. As duas.
Eu quis sumir. Quis desaparecer dali. Rasgar aquele vestido ridículo, gritar, quebrar tudo. Mas não fiz nada. Eu apenas fechei os olhos.
Mãe: “Ava, querida, se você tivesse se cuidado mais… se não tivesse comido como um pedreiro nos últimos meses, não estaríamos passando por esse tipo de vergonha. Você não é mais uma menina, precisa ter postura, precisa manter o homem ao seu lado.”
Ava: “Eu perdi um filho. Vocês se esquecem disso com facilidade, né?”
Scarlett: “A gente lembra. Só que você não precisa carregar o luto na balança, né? Você já perdeu o bebê, não precisa perder o noivo também.”
Ela falou com um sorriso no canto dos lábios. Como se o sofrimento alheio fosse um passatempo para ela. Como se eu fosse a piada de uma reunião de família que ela jamais deixaria morrer.
Mãe: “Scarlett tem razão. O Brian é um bom partido. Lindo, bem-sucedido, elegante. Ele merece uma mulher à altura.”
E então ela completou com a frase que me destruiu de vez:
Mãe: “Você era essa mulher, Ava. Antes.”
A palavra "antes" ficou girando na minha cabeça como uma sentença. Antes do luto. Antes da dor. Antes de eu perder meu bebê. Antes de eu me perder.
Meu pai estava sentado no sofá, em silêncio, com o jornal nas mãos. Ele não olhava pra mim. Nunca olha. Ele só estava ali de corpo. A mente dele sempre fugiu dos problemas. Especialmente os meus.
Ava: “Pai…”
Ele apenas baixou o jornal, deu um suspiro impaciente e disse:
Pai: “Amanhã é um dia importante. Vamos manter a aparência, por favor.”
Aparência.
Sempre foi sobre isso. Nunca sobre mim.
Me vesti em silêncio, sentindo a garganta queimar. Minhas mãos tremiam. Não era só raiva. Era tristeza. Uma tristeza tão profunda que não cabia mais no meu peito. Uma tristeza que eu carregava no corpo, nos ombros curvados, nas olheiras fundas, na alma exausta.
Scarlett: “Você já considerou cancelar o casamento? Juro que ninguém ia julgar. Até o Brian, no fundo, deve estar torcendo pra isso.”
Mãe: “Seria menos constrangedor pra todos. Mas claro, se você tiver coragem de seguir em frente... nós estaremos lá. Afinal, uma tragédia familiar também rende boas fotos.”
Eu quis responder. Quis gritar. Quis quebrar aquele espelho com um soco e cortar tudo que me prendia àquela gente.
Mas eu apenas respirei fundo.
E sorri.
Um sorriso torto, sem força. Mas que dizia, de algum modo, que eu ainda estava de pé. Ainda que sangrando.
Ava: “Eu vou me casar amanhã. Com ou sem o apoio de vocês.”
Scarlett: “Com esse corpo?”
Ava: “Com esse corpo. Com essa dor. Com essa força que vocês nunca vão entender.”
Ela riu, debochada.
Scarlett: “Brian deve ter um caso. Aposto que vai fugir com a madrinha loira. Aposto cem dólares.”
Mãe: “Scarlett, querida… não diga isso. Pelo menos não em voz alta. Você sabe como a Ava é sensível.”
Mais risadas.
Meu pai apenas virou a página do jornal. Frio. Ausente. Cúmplice por omissão.
E ali, naquela sala, cercada por gente que compartilha meu sangue mas jamais sentiu minha dor, eu percebi:
Eles nunca me amaram.
Nunca me viram.
E nunca torceram por mim.
Mas sabe o que mais?
Talvez seja por isso que, amanhã, eu vá me levantar.
Colocar aquele maldito vestido.
E caminhar até o altar.
Se não for por Brian, vai ser por mim.
Mesmo que ele não me espere no fim do corredor.
Mesmo que o mundo inteiro me vire as costas.
Eu ainda vou estar ali.
De pé.
Com o coração partido, sim.
Mas com a cabeça erguida.
Porque eu sou mais do que o corpo que perdi.
Mais do que o peso que ganhei.
Mais do que os olhares que me condenam.
E eles?
Eles vão assistir.
De camarote.