“Algumas dores não gritam, elas sussurram até te destruir.”
Angeline Minha cabeça latejava como se mil martelos estivessem batendo dentro do meu crânio. Tudo ao meu redor era um borrão, vozes abafadas, cheiros estranhos, um gosto metálico e amargo colado no céu da boca. Eu ainda estava em transe. O corpo mole, inerte, como se tivesse sido atropelado por um furacão e largado no meio do nada. A consciência voltava em pedaços, desconectada. Tentei me mexer, mas os braços pareciam feitos de chumbo. A respiração saía em arfadas curtas, doloridas. Pisquei várias vezes, tentando afastar a névoa que cobria minha visão. O chão gelado sob minhas costas me deu a primeira confirmação: eu não estava em casa. Não estava em Tromsø. Não estava na porra da Noruega. E definitivamente não estava em nenhum lugar onde eu deveria estar. O teto acima era de concreto rachado, com lâmpadas fracas piscando como se pudessem apagar a qualquer segundo. O lugar inteiro parecia prestes a desabar. Um galpão enorme, abafado, fétido. Gente demais ali dentro. Meninas jovens, muitas menores de idade. Meninos assustados. Travestis jogados como lixo em colchões rasgados, cobertos por cobertores encardidos. Alguns gemiam, outros estavam em silêncio absoluto, como se já tivessem desistido de existir. O cheiro era insuportável, urina, suor, sangue seco e desespero. Tudo impregnava minhas narinas como um aviso: você caiu no inferno. — Mais uma acordou. — murmurou uma voz feminina. Uma mulher se aproximou. O rosto dela era marcado pela vida, rugas profundas, cicatrizes, olhar morto. Talvez uns cinquenta anos, talvez muito menos, mas a alma dela parecia centenária. Trazia um copo de plástico nas mãos. Água. Mas eu não conseguia confiar. Reagi com um leve recuo, mais instintivo do que consciente. Ela só estendeu a mão, sem expressão. — Bebe. Se não morrer de sede, morre de medo. — disse, num tom resignado. Meus dedos tremiam quando peguei o copo. Engoli a água devagar, como se ela pudesse queimar minha garganta. Era morna, suja, mas naquele momento parecia ouro. Tentei falar, mas a voz quase não saiu. — Onde... onde eu estou? A mulher deu um sorriso triste, irônico. — No limbo, querida. Aqui é o lugar onde as pessoas deixam de existir. Antes que eu pudesse fazer mais perguntas, uma porta de ferro se escancarou com um estrondo. Dois homens entraram. Armados. Um deles carregava um distintivo pendurado no pescoço. Um agente. Filho da puta. Daqueles que deveriam proteger, mas estavam metidos até o pescoço nessa merda. — Lista de hoje. — disse o homem, entregando uma folha para a mulher. — Essa aí é nova. — ela apontou para mim com um leve movimento de queixo. O desgraçado se aproximou, me encarando como se estivesse avaliando um pedaço de carne. Senti o ódio brotar, quente, furioso. Quis levantar e arrancar os olhos dele com as unhas, mas meu corpo ainda não respondia. — Vai direto pro leilão. Se não for vendida, vai pro puteiro. — decretou, como se estivesse falando de qualquer coisa que não fosse uma vida humana. Leilão. Bordel. As palavras ecoaram na minha cabeça como sentenças de morte. Meu estômago virou. Um gosto de bile subiu pela garganta. Eles não sabiam quem eu era. Não tinham a menor ideia de quem tinham encostado as mãos. E isso, por mais irônico que fosse, talvez fosse a única coisa que ia me manter viva por enquanto. Mas uma certeza já queimava dentro do meu peito, mais forte que o medo, mais forte que a dor. Eu ia sair dali. Nem que fosse em cima de corpos.