"Fugir não apaga cicatrizes. Só as esconde até a próxima batida na porta."
Matteo Depois do café, o silêncio me acompanhou até o escritório. O corredor da mansão parecia mais longo do que o normal. Os quadros de família pendurados nas paredes já não significavam nada. Eram só lembranças fossilizadas de uma linhagem manchada por sangue, poder e perdas. A ausência de Alessandra era como uma rachadura invisível em cada parede. Tudo parecia... vazio. E, ao mesmo tempo, prestes a explodir. Giovanni fechou a porta atrás de nós assim que entramos. Jogou um fichário grosso sobre a mesa de mogno e se encostou na estante. — Temos um problema. — começou. — Novidade. — retruquei, sem tirar os olhos da tela do notebook. — Um problema com nome e sobrenome. Levantei os olhos, impaciente. — Fala logo, porra. — Giulia Bianchi. — disse ele. — A promotora. Estão dizendo que ela está mais ativa do que deveria. E melhor... que ela sabe onde Angeline se esconde. Meu maxilar travou. O nome dela ainda era um gatilho. Uma maldita cicatriz aberta que insistia em sangrar. Mas não deixei transparecer. — Que tipo de informação é essa? — perguntei, seco. — Nada confirmado. Mas temos um informante em Roma que garante que Giulia está financiando uma rede paralela. Discreta. Focada em interceptar rotas da Ndrangheta. Principalmente as ligadas a tráfico humano. Cruzei os braços. O sangue começava a ferver sob a pele. A porra da heroína de toga queria brincar de justiceira em território nosso? — E o que isso tem a ver com Angeline? — Segundo esse informante, Giulia anda obcecada com uma possível testemunha-chave. Alguém que poderia ajudar a desmontar o núcleo da Calábria. Alguém que conheça os bastidores. As conexões. — Ele fez uma pausa e completou com pesar — Tudo aponta para ela, Matteo. Me levantei devagar. Caminhei até a janela. O campo lá fora seguia calmo, mas era um engano. Por dentro, o império estava cheio de brechas. E uma delas atendia pelo nome de Angeline. Giulia Bianchi tinha cruzado uma linha. — Quero ela. — falei baixo. Giovanni franziu o cenho. — Como assim? Me virei, encarando ele nos olhos. — Sequestrada. Hoje. Manda dois dos nossos melhores homens. Ninguém pode saber que fui eu. Nada de rastros. Quero essa mulher aqui até o fim da semana. De preferência, em silêncio. Se tentar resistir, quebrem ela. Mas tragam viva. Giovanni hesitou por um segundo. — Matteo... isso pode trazer consequência. Ela ainda é promotora. Pública. Não é qualquer uma. — E daí? — rosnei. — Quantos juízes, delegados e promotores já morreram em acidentes estúpidos? Ela se colocou no tabuleiro. Agora vai jogar conforme as regras. As minhas regras. Voltei à mesa, peguei meu isqueiro de prata e acendi um cigarro. — E se Angeline realmente estiver viva... Giulia vai ser a porta de entrada. Nem que eu precise arrancar isso dela dente por dente. O silêncio do escritório pesou. Giovanni assentiu. — Vou cuidar disso. — Cuida mesmo. E rápido. Traguei fundo, deixando a fumaça encher os pulmões. O gosto era amargo, metálico. Como tudo naquela casa. Como tudo desde que ela me deixou. Angeline. O nome queimava como veneno, mesmo dez anos depois. Ela achou que podia fugir. Que virar poeira a protegeria do que a gente tinha. Mas o tempo só fez crescer a dívida. E agora... a cobrança estava chegando. O relógio marcava 09:47. Começava agora o que ela jamais conseguiria evitar: o fim da fuga. Porque até mesmo os fantasmas têm endereço.