Vozes do Passado

Isabela's POV

Acordei com o som abafado da chuva batendo na varanda de vidro do meu quarto. Por um instante, fiquei deitada observando as gotas escorrendo lentamente, como se o tempo estivesse tentando me convencer a ficar imóvel, presa ao silêncio. Mas a verdade é que algo dentro de mim já havia mudado. Não era apenas Arthur, nem a traição, nem a conversa com Erick — era uma força estranha, profunda, que me chamava a olhar para um passado que sempre temi encarar.

Levantei devagar, sentindo o frio do piso de mármore tocar meus pés descalços. Vesti um moletom antigo e fui até o escritório improvisado no canto da sala. Era ali, em uma estante escondida, que guardava as poucas lembranças da minha infância. Uma caixa de madeira escura, com detalhes entalhados em formato de folhas e galhos, repousava intacta havia anos. Eu nunca tivera coragem de abri-la por completo. Era um relicário de segredos — e, naquela manhã, sem exitar, senti que estava pronta.

Sentei no chão e deslizei os dedos pela tampa até ouvir o som suave do encaixe se soltando. O cheiro de madeira antiga e papel amarelado escapou como um sopro de outra época. Dentro, encontrei as fotografias de Luana e eu pequenas, rindo na praia; uma medalhinha de prata com as iniciais “E.G.” gravadas; uma pulseira infantil azul clara, com letras bordadas — “Isa”. Havia também um envelope dobrado com meu nome escrito de forma apressada. Meu coração começou a bater mais forte.

Abri o envelope com cuidado. O papel estava amarelado, mas as palavras ainda eram nítidas:

- “Se algum dia você encontrar isso, Isa, saiba que a verdade está mais próxima do que imagina. Nada do que te contaram é toda a história. Alguém mentiu. E quando o nome dele for dito, você vai lembrar. — E.”

Por um instante, fiquei completamente imóvel. “E”? Quem era E? As letras bordadas na pulseira, as iniciais na medalhinha, a assinatura no bilhete… tudo parecia apontar para algo que eu não compreendia. Ou talvez, para alguém que meu coração reconhecia, mesmo que minha mente ainda estivesse bloqueada.

Fechei os olhos e respirei fundo. Lembranças difusas começaram a surgir — o som de um motor, risadas de crianças correndo por um jardim, o toque de uma mão pequena na minha. Uma voz sussurrava meu nome: “Isa... não esquece de mim”. Eu devia ter uns quatro ou cinco anos. Era uma memória escondida, enterrada tão fundo que agora voltava com força suficiente para me arrepiar inteira.

A tela do meu celular vibrou em cima da mesa. Olhei rapidamente: número desconhecido. Hesitei por um segundo antes de atender.

— Alô? — minha voz saiu baixa, rouca de ansiedade.

O silêncio do outro lado era denso, como se alguém estivesse ouvindo minha respiração com atenção. Então, uma voz masculina, abafada, falou:

— Ele está vivo.

Meu corpo inteiro gelou.

— Quem está vivo? — perguntei, engolindo seco.

A ligação caiu. Tentei retornar, mas o número estava indisponível. Senti minhas mãos tremerem. Corri até a janela e olhei para a rua: nada além da chuva fina e carros passando lentamente. Mas havia um peso no ar. Uma presença que não sabia explicar.

Voltei para a caixa e tirei mais coisas. Encontrei recortes de jornais antigos, recados de aniversário e uma foto dobrada no fundo. Ao abri-la, quase deixei cair: era eu, ainda criança, ao lado de um menino de olhos claros e sorriso travesso. No verso, escrito à caneta: *“Isa e Ethan — verão de 2005.”*

Ethan.

O nome que ecoou no fundo da minha mente nos últimos anos sem que eu soubesse de onde vinha. Ethan… “E”.

Respirei fundo, tentando processar tudo. A família de Luana nunca mencionou Ethan. Nunca me falaram que eu tinha um irmão. Ou talvez, não um irmão de sangue — mas alguém próximo o suficiente para que eu o tivesse amado como tal. Por que esconderiam isso de mim?

Liguei o notebook e comecei a vasculhar tudo o que tinha. Pastas, registros, documentos escaneados que havia ignorado ao longo dos anos. Encontrei meu registro de adoção. Havia um nome riscado com marcador preto — e acima dele, escrito com letras formais: “Família Alencar, Luana”. Mas abaixo, com letras quase apagadas, lia-se “Ethan G.”

Meu estômago revirou. Estava ali, bem diante de mim.

As horas passaram sem que eu percebesse. A chuva cessou e o céu da cidade A foi se tingindo de laranja e azul com o entardecer. Eu ainda estava ali, no chão, rodeada de lembranças. Quando me levantei para fechar as cortinas, senti um arrepio súbito. Algo — ou alguém — estava do lado de fora.

Apoiei as mãos no vidro e olhei cuidadosamente. A rua estava quase vazia. Mas, encostado em um carro preto, havia um homem parado, de capuz. Não conseguia ver seu rosto, mas ele estava olhando diretamente para o meu apartamento. Não piscava. Não se movia.

Meu coração começou a bater forte, como se estivesse prestes a saltar do peito. Peguei o celular com as mãos trêmulas e liguei para a portaria.

— Tem alguém parado lá fora — sussurrei. — Em frente à torre cinco.

O segurança respondeu:

— Senhora Isabela, não tem ninguém aqui no monitor. Deve ter sido impressão sua.

— Não foi impressão — insisti.

Olhei novamente. O homem havia desaparecido.

Passei o resto da noite com as cortinas fechadas e as luzes apagadas. Não era apenas o passado que estava voltando para me assombrar — havia alguém vivo, lá fora, me observando. E de alguma forma, tinha a ver com Ethan.

Antes de dormir, abri a última mensagem de Erick. Ainda não havia respondido. Mas agora, mais do que nunca, eu sabia que precisaria dele. O passado não podia mais ser ignorado.

Escrevi rapidamente:

> “Erick… precisamos conversar. Amanhã. Isso é maior do que eu imaginava.”

Enviei a mensagem e fiquei encarando o teto por longos minutos, sentindo que aquela seria a noite em que minha vida deixaria de ser uma linha reta — para se tornar um labirinto de verdades enterradas e sombras silenciosas.

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