📄CAPÍTULO 1
Nunca foi por amor. E eu sempre soube. As luzes do escritório pareciam mais frias naquela manhã. O mármore refletia tudo — inclusive meu rosto pálido, meus olhos duros, minha postura que tentava se manter ereta, mas estava prestes a desabar. Sentada de frente para a mesa do advogado, eu mantinha as mãos entrelaçadas no colo, como se aquilo pudesse conter o tremor que subia pelas minhas pernas. Meu blazer estava colado ao corpo, não pelo calor. Era o suor do que eu sabia que viria. E mesmo assim… eu não estava preparada. — Senhora Alinna... A voz dele cortou o ar como uma navalha embebida em formalidade. Levantei o olhar. — O senhor Eduard deixou tudo registrado com clareza. Ele fez questão de que certas cláusulas fossem lidas apenas na sua presença. Em caráter… pessoal. A palavra “pessoal” me atravessou o peito. Eduard. Sempre tão metódico. Tão obcecado por controle. Até morto, ele dava um jeito de ditar as regras do jogo. O advogado abriu o envelope lacrado com um estilete prateado. Deslizou os olhos pelo texto com a lentidão calculada de quem carrega uma granada no colo. Começou a ler. Mas eu não escutei tudo. Meu cérebro selecionou palavras ao acaso, como se tentasse me poupar de um naufrágio inevitável. "...em virtude da minha plena confiança em Caio Bastien Moreau..." "...a continuidade da empresa exige sacrifícios estruturais e emocionais..." "...minha esposa, Alinna, terá garantida sua participação acionária apenas sob condição de convivência civil com..." "...prazo de seis meses, conforme estipulado, para efeito legal..." Fechei os olhos. A bile subiu. Mas engoli. Porque desmoronar na frente de um advogado velho e um estagiário calado seria dar mais espetáculo do que ele merecia. Quando a leitura terminou, o advogado ergueu os olhos e me encarou como quem pede perdão por um crime que teve que cumprir por ordens superiores. — Eu entendo o quão inesperado pode parecer. Mas… essas foram as vontades expressas do seu esposo. E sim — estão dentro da legalidade. Não respondi. Eu apenas me levantei. As pernas bambas. A pele gelada. Peguei minha bolsa com uma dignidade costurada a facadas. E saí. Lá fora, o céu parecia cúmplice da tragédia. A chuva caía em cortinas. Procurei o carro. O motorista. Qualquer coisa. Nada. Nenhuma alma viva além da água e do vento. Até que o vi. Encostado no carro preto, parado debaixo da tempestade. Caio. A jaqueta de couro colada ao corpo. Os cabelos encharcados caindo sobre os olhos. O queixo trincado. A camisa branca entreaberta. E aquele olhar de quem não dormia havia semanas. Ou talvez… desde o enterro do irmão. Ele não disse nada. Apenas abriu a porta do carro. Entrei. O cheiro de cigarro misturado ao perfume dele estava impregnado no estofado. O vidro embaçado. O motor ronronando baixo. E o silêncio… o maldito silêncio. Ele deu a partida. Nenhum dos dois se olhou. O caminho até a casa foi longo. Ou talvez só tenha parecido. Porque quando a respiração pesa, até o tempo tem gosto de ferro. Nenhuma palavra. Nenhuma música. Só a chuva. E o som abafado de dois corações que fingiam não existir dentro do mesmo carro. Quando estacionamos, ele desligou o carro, mas não se mexeu. Ficou ali, com os olhos fechados, o maxilar trincado. Peguei minha bolsa. Abri a porta. Desci. Mas antes de entrar em casa, virei o rosto. Ele ainda estava ali. Sem se mover. O rosto virado para o volante. Como se pedisse ao universo uma resposta que o testamento não deu. Subi. Cada degrau parecia uma sentença. Tirei os sapatos molhados no segundo lance. Deixei o casaco escorregar no chão do corredor. Naquela noite, chorei em silêncio. Não por Eduard. Não pela herança. Mas por tudo aquilo que eu não tive coragem de mudar quando ainda era tempo. E por uma verdade que me corroía há sete anos: Eu odiava o irmão dele. Mas odiava ainda mais o fato de não conseguir odiá-lo também. --- A água quente escorria pelo meu corpo como se pudesse arrancar o dia da pele. Fiquei ali, parada, até o vapor tomar conta de tudo. Até minha raiva se misturar com cansaço e confusão. Quando finalmente desliguei o chuveiro e me enrolei na toalha, o silêncio do quarto me pareceu estranho. Foi então que abri a porta… e congelei. Caio estava ali. Sentado na beirada da cama. Molhado de chuva, os cotovelos nos joelhos, o olhar preso ao chão. — Foi isso mesmo que eu ouvi? Minha garganta fechou. — Ele exige isso? — O que você está fazendo no meu quarto? Ele se levantou num rompante e gritou: — Responde, porra! — Não me grite! Senti o peito rasgar. — Eu sei que sou só a porra da viúva do seu irmão. Sei que sou só mais uma fodida pela porra da vida... mas eu exijo o mínimo. Respeito! Ele respirou fundo, trincando o maxilar. — Tá... desculpas. Passou a mão no cabelo. — Eu ouvi. Temos seis meses para... — Não temos, Caio. Cuspi a resposta. — Eu não aceito isso. — Por quê? — Você me pergunta por quê? Senti o choro vir como um veneno. A garganta ardia. — Eu passei sete anos dentro dessa casa sendo tratada como uma oportunista, uma interesseira, sendo humilhada por você todos os dias. E você me pergunta por quê? Enxuguei as lágrimas com a palma da mão, mas era inútil. — Eu sei que essa casa, a empresa, tudo é seu, Caio. E não se preocupe. Eu não vou levar nada. Encarei ele. Fria, devastada, real. — Agora, por favor… sai do meu quarto. Eu odiava o irmão dele. Mas odiava ainda mais o fato de não conseguir odiá-lo também. O que exatamente Eduard esperava, ao unir os dois que mais se afastaram? Amor, vingança ou apenas mais uma jogada de controle?