Naira
Saímos do hospital no fim do dia. O sol estava se despedindo de forma gentil, como se soubesse que aquele momento era frágil demais para luzes fortes, a calmaria da noite seria melhor para mim. Brandon segurou minha mão com firmeza, mas sem pressa. O carro nos esperava na saída, discreto, com vidros escuros. Nada de imprensa. Nenhuma multidão.
Achei estranho quando não seguimos para uma casa grande ou para algum lugar com seguranças à vista. Eu sabia, mesmo sem lembranças, que ele era uma figura pública importante, as flores, os cartões, os telefonemas que chegaram ao hospital me diziam isso. Mas ele parecia ignorar completamente o peso do título de “governador”.
— Achei que a gente iria pra casa. — Murmurei, olhando pela janela.
Brandon sorriu sem tirar os olhos da estrada.
— Vamos. Mas não para a casa oficial. Vamos para um lugar só nosso.
— Só nosso?
— Um apartamento. É pequeno, mas tem muito da nossa história. Você pediu para manter nosso relacionamento longe da mídia no começo... não queria que nossa vida virasse manchete. — ele deu uma breve risada — Sempre foi muito determinada quando colocava uma ideia na cabeça.
Olhei para ele tentando encontrar vestígios daquela versão de mim. Talvez ela ainda estivesse ali, em algum canto escondido do meu peito. É difícil ouvir sobre mim pela voz de outra pessoa, parece um diário que me pertence e sem querer eu deixei outra pessoa ler.
— E agora? Por que esse lugar?
— Conselho da sua médica. Ela acha que um ambiente mais calmo, íntimo, pode te ajudar a se reconectar consigo mesma, e… comigo. Nada de grandes espaços, nem pessoas demais. Só eu e você, como no início.
Quando chegamos, confesso que me emocionei. O prédio era discreto, de fachada neutra, com poucos andares e plantas pendentes nas sacadas. O elevador antigo fazia um leve rangido ao subir. Era como entrar em outro tempo. Brandon abriu a porta do apartamento e me guiou para dentro, como se estivesse me mostrando um segredo.
— Bem-vinda de volta, Naira.
O lugar era aconchegante e cheio de detalhes que pareciam conter memórias que minha mente ainda não me devolvia. A sala era pequena, com um sofá cinza macio e uma manta dobrada com cuidado sobre o braço. Havia uma estante com livros bem organizados, alguns porta-retratos virados para baixo, respeitando meu processo, talvez, e um vaso com flores frescas sobre a mesinha de centro.
A cozinha americana se abria para a sala, com armários claros, poucos eletrodomésticos e duas canecas sobre o balcão. Uma dizia “dele” e outra “dela”. Sorri sem querer.
— Você mantinha tudo exatamente assim?
— Não tive coragem de mudar nada. Cada canto aqui tem a tua marca. — ele se aproximou devagar, como se não quisesse me assustar — Achei que talvez... estando aqui, você pudesse sentir algo familiar.
O lavabo ficava logo à direita da entrada, simples e elegante. E o quarto... o quarto era uma cápsula de intimidade. Uma cama queen com lençóis brancos e travesseiros fofos, um guarda-roupa embutido e uma janela enorme que deixava a luz invadir tudo. Ao lado, uma suíte pequena, mas charmosa, com espelho grande e cheiro de lavanda.
Fiquei em silêncio por alguns minutos, absorvendo tudo.
— É bonito... — murmurei — E parece... seguro.
Brandon me olhou como se aquelas palavras fossem a maior vitória do mundo.
— Aqui ninguém vai nos incomodar. Esse lugar é só nosso, Naira. Sem pressões, sem expectativas. Só a gente... e o tempo que você precisar.
Fechei os olhos por um instante, sentindo o ar do lugar. Talvez eu não me lembrasse ainda do passado, mas algo naquele apartamento me dizia que, se eu tinha escolhido amar aquele homem um dia... devia haver uma razão muito boa. E, quem sabe, ali, entre aquelas paredes silenciosas, eu pudesse encontrar essa razão de novo.
O céu visto da janela do quarto era um manto azul-escuro sem estrelas, e o som mais alto era o leve tic-tac do relógio na parede. Brandon ajeitava a colcha na cama, dobrando-a com cuidado quase cerimonial, enquanto eu permanecia em pé, encostada na porta, observando. Respirei fundo. Precisava ser sincera.
— Brandon? — Ele se virou, imediatamente atento, como se cada palavra minha fosse uma bússola que ele não podia perder de vista.
— Eu queria... conversar uma coisa com você. — Brandon se aproximou, devagar, sem pressa de invadir nenhum espaço.
— Claro. O que foi?
Encarei o sofá no canto do quarto. Estava ali por alguma razão. Talvez antes fosse usado para outras coisas, mas agora parecia ter ganhado um novo propósito. Apoiei uma das mãos no batente da porta, tentando encontrar um jeito gentil de dizer o que eu precisava.
— Será que... por enquanto... você poderia dormir no sofá?
Brandon ficou em silêncio por alguns segundos. Os olhos dele perderam um pouco do brilho, e ele desviou o olhar, como quem leva um golpe no peito sem querer mostrar que doeu.
— Claro. — forçou um pequeno sorriso — O sofá e eu somos velhos amigos. Ele até tem o meu formato já, de tantas noites ali.
A tentativa de leveza me cortou mais do que qualquer tristeza. Ele estava tentando me proteger, mesmo machucado. Mesmo com saudade. Não podem me julgar e condenar, me sinto como se ainda fosse virgem e ele um estranho. Seu rosto é novo para mim.
— É só até eu me sentir mais confortável... não é por mal.
— Eu sei, amor. — ele assentiu, pegando o travesseiro — Não precisa se explicar. Você está sendo honesta. E isso já me dá esperança.
Ele foi até o canto e começou a preparar o sofá sem fazer barulho, como se não quisesse perturbar nem o ar do quarto. Eu fiquei ali, parada, sentindo um nó estranho no peito. Depois, me virei e saí, andando em direção à sala.
O apartamento estava calmo. Cada objeto parecia respirar lembranças. Caminhei até a estante com os livros e, por impulso, estendi a mão para o primeiro porta-retrato de costas. Virei-o.
Era uma foto nossa. Estávamos numa praia, os pés na areia, cabelos bagunçados pelo vento e sorrisos largos demais para serem apenas pose. Brandon me abraçava por trás, o queixo encostado no meu ombro. Nossos olhos estavam fechados... mas felizes. Verdadeiramente felizes.
O segundo mostrava uma cerimônia ao ar livre. Vestido branco. Alianças. O olhar dele fixo em mim, como se o mundo inteiro tivesse sumido. E o meu... mesmo sem me lembrar daquele momento, algo em mim reconheceu o sentimento.
Fui virando, um a um. No piquenique, rindo com sorvete no rosto. Em frente a um food truck, com flores nas mãos. Numa noite de chuva, encolhidos sob um guarda-chuva que não nos cobria direito. Tantas versões de nós dois, todas carregando o mesmo brilho nos olhos.
Engoli em seco. Meus dedos tremiam levemente.
— O que você viu? — Brandon perguntou atrás de mim, com a voz baixa, sem se aproximar.
— Eu... — virei mais uma foto, dessa vez de nós dois dançando numa sala iluminada apenas por luzes penduradas — Eu vi amor.
Houve um silêncio longo antes que ele dissesse:
— Foi sempre isso. Mesmo com os altos e baixos, mesmo com os tropeços. Foi sempre amor.
Toquei uma das molduras, sentindo o vidro frio sob meus dedos.
— Parece tudo tão longe de mim... e ao mesmo tempo... tão certo.
Ele não respondeu. E eu também não disse mais nada. Mas ali, cercada por lembranças que ainda não eram minhas, eu comecei a entender que talvez não fosse preciso lembrar de tudo para sentir. Às vezes, o coração reconhece o que a mente esqueceu.
E naquele silêncio cheio de memórias... eu deixei meu coração começar a lembrar.