A Babá Espiã Destinada ao Mafioso
A Babá Espiã Destinada ao Mafioso
Por: Mitha Souza
Prólogo

O sertão acordava antes do sol. A terra ainda guardava o calor do dia anterior, o vento soprava seco, carregando poeira, mandacaru e lembranças de promessas quebradas. Cada manhã parecia feita de espera, paciência e silêncio, como se até o tempo soubesse que ali ninguém tinha pressa. Myrthes caminhava descalça pela estrada de barro. As pedras machucavam seus pés, mas ela não diminuía o passo. O céu se tingia de laranja e dourado. Ela respirava fundo, sentindo o mundo suspenso entre o que foi e o que ainda poderia ser.

— Um dia a gente vai embora daqui — disse Heitor, surgindo ao lado dela, como fazia desde crianças.

Ela sorriu sem virar o rosto.

— Vai mesmo — respondeu. — Mas não assim.

Ele riu baixo, os olhos desviando para o horizonte seco.

 — E como seria o seu “assim”, Myrthes?

Ela parou. O sol nascendo iluminava o cabelo dele, o corpo forte de quem cresceu no trabalho árduo, o olhar determinado que nunca se contentava com pouco. 

— Estudando. Trabalhando direito. Sem dever nada a ninguém.

— Isso demora demais — disse ele.

— Mas chega — rebateu ela, firme. — O que vem rápido demais cobra caro depois.

Ele não respondeu. Desde sempre eram inseparáveis. Dividiam risos, fome, medo, sonhos grandes demais para aquele chão seco. Heitor falava em casas, carros, dinheiro suficiente para nunca mais ver a mãe chorar. Myrthes sonhava com livros, diplomas, uma vida digna. Eles se amavam. E não havia dúvida disso. 

Mas o mundo lá fora não perdoava sonhos. O crime organizado crescia silencioso, sem manchetes, sem tiros. Favores, dinheiro fácil, promessas sedutoras. Caminhões passavam à noite, negócios eram feitos em silêncio, decisões eram tomadas longe dos olhos da polícia. Foi inevitável que notassem Heitor. O carisma, a liderança, a ambição nos olhos chamavam atenção. Ele sabia ouvir, convencer, comandar sem parecer autoritário. Exatamente o tipo de pessoa que precisavam.

O convite veio numa tarde quente, disfarçado de conversa casual. Um dos líderes locais, encostado em uma caminhonete velha olhou para Heitor como quem avalia mercadoria rara:

— Você é inteligente demais pra ficar aqui garoto. Dá pra ganhar dinheiro, ajudar sua família. Só uns serviços aqui e ali.

Ele fingiu desinteresse, mas a proposta ecoou na cabeça dele por dias. Dinheiro rápido. Poder fazer mais do que naquele momento podia imaginar. Uma saída. Uma oportunidade. Naquela noite, procurou Myrthes. Sentaram-se sob o céu estrelado, onde prometeram eternidades.

— Me fizeram uma proposta — disse ele, direto.

Ela sentiu o estômago revirar. — Que tipo de proposta?

— Negócios que vão fazer algum dinheiro entrar. Não é coisa limpa… mas também não é pesado. Eu pensei que talvez…

— Não — interrompeu ela, segurando a mão dele com força. — Não termina essa frase.

Ele calou-se, sentindo a seriedade no olhar dela.

— Eu tô grávida, Heitor.

O mundo pareceu congelar. As estrelas acima, o silêncio do sertão, tudo desapareceu.

— O quê? — Ele engoliu em seco.

— Eu só tenho dezessete anos — disse ela, a voz tremendo. — Descobri hoje. E não posso enfrentar isso sozinha. Se você se mete em coisa errada, sabe qual é o fim disso, não sabe?

O silêncio caiu sobre eles, pesado, intransponível. Heitor passou as mãos pelo rosto, andou de um lado para o outro, respirando fundo. Sentiu medo. Medo de falhar, de repetir erros, de não ser suficiente. De se enveredar po r esse caminho e não poder estar coma a família que acaba de saber que vai formar. 

— A gente vai dar um jeito — disse ele, finalmente, parando diante dela. — Mas não desse jeito. Não com coisa errada.

Ela chorou de alívio. — Promete?

— Prometo — disse ele, firme. A dor nos olhos denunciava o preço daquela promessa.

No dia seguinte, recusou a proposta. Ninguém diz “não” impunemente.

A resposta veio rápida e cruel. O irmão mais novo foi emboscado ao voltar para casa. Espancado até não resistir. Deixado na estrada como aviso. Heitor chegou tarde demais. O garoto morreu antes da ambulância chegar. Com ele, morreu o último vestígio de inocência.

A ameaça foi clara: ou você entra, ou elas entram na cova. Myrthes, a mãe dele, o bebê.

Naquela noite, Heitor tomou a decisão mais difícil da vida. Não se despediu. Mal chorou a morte do irmão. Não se explicou. Apenas sumiu. Entrou no crime para proteger quem amava, mesmo que isso significasse se transformar no que sempre odiou.

Myrthes acordou sozinha. Esperou por dias. Procurou e não encontrou pistas. Chorou até quase desfalecer. Nada aconteceu. Dias depois perdeu a mãe que morreu de uma parada cardíaca. Meses depois perdeu o chão, sem ninguém, sem apoio. Anos depois perderia o que tinha de mais precioso. Mas naquele momento, só sabia que o amor da sua vida havia desaparecido.

O sertão, impassível, assistia tudo em silêncio. Cada pedra da estrada, cada raiz seca, cada raio de sol lembrava que o tempo continuaria a passar, indiferente à dor humana. Ela se agarrou à vida como pôde, mas o vazio era enorme. E a pergunta que martelava não tinha resposta: por que ele foi embora sem uma palavra?

Do outro lado, Heitor carregava o peso de proteger a família, mesmo que isso significasse condenar a si mesmo. Sua ambição, seu amor e o destino se cruzaram em uma encruzilhada impossível. Naquele silêncio do sertão, ambos compreendiam que nada jamais seria como antes.

E assim, entre o calor do dia que nascia e a poeira do passado, o sertão guardava segredos, promessas quebradas e a dor de dois corações que tiveram que escolher entre amor e sobrevivência.

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