Mundo ficciónIniciar sesión— Heitor! — gritei no sonho, mas a voz não saía.
O grito ecoava nos meus ouvidos. Senti o chão sumir sob meus pés, e o vento quente do sertão parecia queimar minha pele. Vi o corpo do irmão dele estendido na estrada de barro, a poeira misturada com sangue seco. Ouvi meu filho chorar, mas quando estendi a mão para pegá-lo, ele desapareceu entre meus dedos.
— Heitor! Onde você está? — gritei novamente, mas me ouvia.
Tudo acontecia tão rápido que não conseguia respirar. Eles me machucavam, puxavam meu cabelo, rasgavam minhas roupas. Cada soco, cada lágrima, cada abandono me esmagava. Meu coração batia tão forte que parecia que ia explodir.
— Heitor! — gritei com todas as forças que ainda tinha e ainda assim ele não veio.
Acordei suando, o corpo todo tenso, e o travesseiro encharcado do meu próprio medo. Levei as mãos ao rosto, tentando afastar o eco da violência, da dor, do desamparo que me perseguia há anos. O relógio marcava 5h17 da manhã. O silêncio do apartamento era quase agressivo, e eu senti vontade de gritar de novo, só para provar que estava viva, que ainda podia lutar.
— Mais um pesadelo — murmurei para mim mesma, respirando fundo, tentando convencer meu corpo a se acalmar.
Vesti o short e a camiseta para correr e saí no frio da madrugada. A cidade ainda dormia, e só o meu tênis batendo no asfalto quebrava a quietude. Cada passo parecia purgar uma lembrança. Corri pelo bairro, sentindo o vento gelado no rosto, lembrando do cheiro do sertão, da poeira, do mandacaru e da sensação de desamparo que me moldou.
— Você ainda pensa nele, não é? — minha voz saiu em forma de sussurro, como se falasse com o próprio vento. — Depois de todos esses anos…
Não houve resposta, claro. Mas o pensamento persistia. Heitor. O homem que deixou minha vida em pedaços, o pai do meu filho, o que eu amei mais do que qualquer coisa. O mesmo que escolheu sumir por pura ambição, no processo, me deixou sozinha, sem chão, sem família, sem esperança.
Voltei para o apartamento, molhada de suor, respirando com dificuldade. Tomei um banho rápido, vesti minha roupa de delegada e peguei a pasta com relatórios que precisava revisar antes da reunião da manhã. Cada documento, cada operação, cada registro de crimes organizados me lembrava de que a vida me deu uma chance de reconstruir algo que tinha sido destruído. Mas a reconstrução nunca apaga a cicatriz.
Cheguei à sede às 7h45, com tempo de revisar algumas informações antes da reunião com a força-tarefa. O café ainda estava quente na xícara, mas meu estômago continuava apertado. Sentei-me, folheando relatórios de movimentações financeiras suspeitas, contratos falsos, transferências entre empresas de fachada. Tudo parecia rotineiro até que ouvi a frase que fez meu corpo inteiro congelar:
— Delegada, encontramos novas movimentações relacionadas à organização que você investigava há anos. E há um nome novo que nunca havíamos ouvido falar dele… Heitor Almeida Castro.
O café caiu da minha mão. A xícara bateu na mesa, e o líquido quente manchou meus papéis. Um silêncio estranho tomou conta da sala. Todos os olhares se voltaram para mim.
— Como assim? — perguntei, quase sussurrando, tentando entender se meu cérebro estava pregando uma peça.
— Ele está ativo — respondeu um dos agentes, sério. — E pelos registros que levantamos, assumiu posição de liderança dentro da organização. Transferências internacionais, negócios com fornecedores de contrabandos e armas, empresas de fachada… tudo aponta para ele.
Meu peito apertou. A mistura de medo, raiva e algo que não queria admitir, saudade, me sufocava. Não conseguia falar. Cada palavra que queria sair parecia presa na garganta.
— Vocês têm certeza? — consegui perguntar, com a voz trêmula. Heitor… ele está vivo e comandando tudo isso?
— Sim. E está mais próximo do que imaginávamos — disse o agente, com uma expressão grave. — Precisamos que você lidere a investigação diretamente. Precisamos de cada detalhe.
Fiquei em silêncio, olhando para a janela. A cidade se iluminava aos poucos, mas eu só conseguia ver o sertão em minha mente, o cheiro de poeira e mato, os gritos, o abandono, o corpo do irmão dele na estrada. O pesadelo se repede dormindo e acordada.
— Então… — comecei, minha voz firme tentando se afirmar —, tudo que precisamos é de informações completas. Quero cada transação, cada contato, cada operação… não deixe nada de fora. Eu vou precisar disso para avançar.
— Entendido, delegada — respondeu o agente, sabendo que não havia espaço para hesitação.
A reunião continuou, mas minha mente já estava longe, perdida no tempo e na memória. Lembrei de quando ele me contou sobre a proposta da organização. Lembrei do nosso último olhar antes dele desaparecer. Lembrei do filho que me foi tirado. Lembrei do medo que senti ao enfrentar a vida sozinha. Cada lembrança me consumia e, ao mesmo tempo, me fortalecia.
— Myrthes, você está bem? — perguntou meu colega, quebrando o silêncio. — Parece que viu um fantasma.
— Estou bem — respondi, respirando fundo. — Só lembranças antigas. Nada que atrapalhe a missão.
Mas sabia que aquelas lembranças estavam profundamente ligadas a ele. Ele sempre esteve ali, de alguma forma, mesmo quando desapareceu da minha vida. O homem que me abandonou para ter uma vida mais abastada, ter riquezas e prestígio, que me deixou para lutar sozinha, ainda tinha o poder de mexer comigo, mesmo depois de todos esses anos.
Depois da reunião, caminhei até a minha sala, sentei-me na cadeira e fechei os olhos por um instante. Precisava organizar os pensamentos antes de começar a investigação. Precisava separar a delegada que eu me tornei da mulher que ainda sofria pelo passado.
— Então é ele — murmurei, quase para mim mesma. — Depois de todos esses anos… Heitor.
A ficha caiu devagar. Cada memória antiga parecia ganhar força. Eu podia sentir o calor do sertão, ouvir o barulho da estrada de barro sob os meus pés, sentir o medo de perder tudo de novo. Mas agora eu tinha controle. Agora eu tinha poder.
— Vamos fazer isso direito — disse, levantando-se. — Nada de erros, nada de distrações. Se ele ainda é como antes, esperto, ardiloso. Não podemos nos dar ao luxo de falhar.
Enquanto organizava os relatórios e contatos, pensei em todas as noites que passei sonhando com ele, com a nossa história, com o que poderia ter sido. E, pela primeira vez em anos, senti que finalmente poderia ter notícias dele. Notícias que mudariam tudo.
O telefone tocou, interrompendo meus pensamentos. Peguei a chamada.
— Delegada Myrthes? — disse a voz do agente do outro lado. — Temos informações adicionais sobre movimentações de Heitor Almeida Castro. Precisamos que compareça à sala de operações imediatamente.
Assenti, mesmo sabendo que ele não podia me ver.
— Estou a caminho.
Enquanto caminhava pelos corredores da sede, meu coração batia acelerado. Era uma mistura de antecipação, medo e… algo que não podia nomear. A sensação era estranha e viciante ao mesmo tempo. Eu sabia que aquele encontro com os fatos poderia mudar minha vida para sempre.
E, mais uma vez, senti que o passado e o presente estavam prestes a colidir, da forma mais inesperada e intensa possível.







