Mundo de ficçãoIniciar sessãoAinda era cedo.
O sol mal tocava as vidraças do casarão, mas dentro de mim já era noite. A noite anterior ainda me prendia. Alejandro não havia apenas me tocado — ele havia atravessado minha pele. Como uma lâmina que desliza devagar, cortando sem pressa, sem alarde. O toque dele, o olhar, as palavras… tudo permanecia latejando em mim. Mesmo assim, levantei. Porque Delucas não sangram em público. A rotina era minha armadura: cada peça da roupa encaixada como se o controle pudesse ser costurado junto ao tecido. Vesti-me com a precisão de quem se recusa a admitir fraqueza. Uma calça de alfaiataria escura. Camisa branca impecável. Cabelo preso. Postura ereta. Emoções trancadas. Desci para o café. E lá estava o cenário perfeito: Porcelanas alinhadas. Cheiro forte de café recém-passado. Os empregados movendo-se em silêncio absoluto. Tudo no lugar. Tudo, menos eu. Sentei à mesa e comecei a mexer o café. Sem prová-lo. A colher girava no líquido escuro como se aquilo pudesse me devolver o equilíbrio. Como se eu pudesse dissolver o que sentia ali. Medo. Desejo. Culpa. E então, o golpe: o jornal. “Expansão de negócios na Espanha: Alejandro Serrano mira fusões no setor de energia e transportes.” A manchete queimou meus olhos. A foto abaixo era um retrato cruel da realidade: Alejandro. Terno escuro. Mandíbula tensa. Olhos que não sorriam. Olhos que vi de perto demais. Não era um conto. Era um homem real. E estava avançando. Um arrepio percorreu minha espinha. Eu deveria temê-lo. E talvez temesse. Mas havia algo além. Algo que me puxava, me corroía e me envergonhava: eu queria vê-lo de novo. Como se, ao olhar para ele, eu enxergasse uma parte minha que sempre foi negada. Meus dedos tremiam levemente. Quase derrubei a xícara. Era isso que ele fazia: desmontava. Foi então que a realidade voltou a bater. Matteo. — Precisamos conversar — disse ele, a voz cortante, dura. Sentou-se sem pedir. Como quem se senta diante de um inimigo. O ar ao redor se contraiu. Matteo não desperdiçava palavras. Quando falava assim, era porque a bomba já havia explodido. — Sobre ontem à noite. Fechei os olhos por um segundo. Devia ter previsto. Matteo era olhos e ouvidos do meu pai. Sempre atento. Sempre à espreita. — Não tem nada pra falar. Foi só uma festa. Mas minha voz… vacilou. Ele se inclinou, os cotovelos sobre a mesa, como um juiz prestes a dar a sentença. — Vi como ele te olhou, Lisa. E vi pior: vi como você olhou de volta. As palavras bateram como t***s. Doloridas. Incontestáveis. — Alejandro não é só um homem. Ele é um predador. E você, minha irmã… é a caça que ainda não sabe que já foi marcada. Fiquei em silêncio. O café esfriava, intocado. — Papà quer que Sofia se case com ele. — Matteo cuspiu as palavras como quem rejeita veneno. — Isso nunca foi sobre sentimento. É política. Território. Jogadas de poder. E você… não faz parte desse jogo. Aquilo doeu mais do que deveria. Mais do que eu estava disposta a admitir. — Eu não estou apaixonada — disse, sem conseguir sustentar o olhar. A mentira soou alta, dissonante. Matteo se levantou, impaciente. Mas antes de sair, deixou a faca: — Com Alejandro Serrano, até o amor pode ser usado como arma. E você ainda não sabe se defender, Lisa. Quando ele saiu, senti o mundo inclinar. O ar ficou denso. Meus pulmões, comprimidos. Uma tontura me agarrou como garras invisíveis. Segurei firme na beirada da mesa, tentando lembrar ao meu corpo que eu ainda estava ali. Mas a verdade é que… eu não estava. Aos poucos, me arrastei até o sofá. Meus ossos pareciam feitos de vidro. Tudo em mim doía. Fechei os olhos. Tentei pensar em coisas normais: no gosto do café, no som dos talheres, no cheiro das flores frescas sobre a mesa. Mas tudo me levava a ele. Alejandro. Foi quando ouvi a voz de Camile. — Lisa? Você está bem? Está pálida. Abri os olhos com esforço. O mundo ainda girava. Camile era a jovem esposa do meu pai. Discreta. Observadora. Às vezes doce demais para esse mundo. Às vezes… uma incógnita. — Estou bem. Só um pouco cansada. — Tem certeza? Assenti. O suficiente para fazê-la recuar. Mas ela viu. Camile sempre via. Quando ela saiu, fui até a janela. Lá fora, o mundo era cinza. Um céu sem promessas. O jardim parecia imóvel, como se aguardasse algo. Apoiei a testa no vidro gelado. Por um instante, me permiti fraquejar. Pensei no beijo. Na respiração dele colada à minha. Na jaqueta pesada sobre meus ombros. No calor que subiu pelo meu corpo. Na sensação de ser, finalmente… vista. Não como herdeira. Não como moeda. Mas como mulher. Era isso que Alejandro fazia: ele enxergava através das máscaras. Ele me despia sem tocar, me quebrava sem violência. E mesmo sabendo o quanto isso era errado… Mesmo sabendo o quanto isso poderia me destruir… Eu queria mais.






