Mundo de ficçãoIniciar sessão
Narrado por Lisa Deluca
Meu nome é Lisa Deluca, e hoje completo dezoito anos. Para muitos, essa idade representa liberdade. Para mim, é só mais uma sentença. Mais um número gravado na parede de uma cela invisível. No meu mundo, idade não é conquista — é um lembrete cruel de que estou mais perto de ser sacrificada em nome de alianças que nunca escolhi. Mais velha, mas não mais livre. Sou a filha mais nova da família Deluca — a única mulher entre quatro irmãos. A caçula de uma linhagem mergulhada até o pescoço no sangue e nas sombras da máfia italiana. Eles nasceram com o fardo do nome. Eu nasci com a ilusão de que poderia escapar dele. Desde criança, meus irmãos me envolveram numa redoma feita de silêncio e negação. Fingem que o mundo ao nosso redor não fede a pólvora e desespero. Que os corpos que somem não carregam nosso sobrenome na boca. Eles me olham como se eu ainda fosse pequena demais para entender. Mas eu sempre soube. Sempre senti. Porque a verdade, por mais que se esconda, sempre encontra uma maneira de entrar. E, na nossa casa, ela entra como uma sombra silenciosa, escorrendo pelas rachaduras das janelas, sussurrando nos cantos escuros dos corredores. Aprendi cedo que, aqui, tudo é dito sem palavras. Um olhar pode valer mais que um aviso. Um silêncio pode ser a maior ameaça. Os códigos da máfia não são explicados — são absorvidos. Você respira, observa, aprende a sobreviver. E eu… sobrevivi. Pelo menos até agora. Aos dezoito, o destino já estava escrito para mim: um casamento arranjado, uma nova aliança selada com véu, grinalda e uma alma enterrada viva. Mas, por enquanto, estou em suspensão. Uma trégua silenciosa que ninguém nomeia, mas que sinto prestes a acabar. Cada dia longe do altar é uma pequena rebelião. Um grito abafado. Mas a corda está esticando, e logo vai partir. Só que, ultimamente, algo em mim mudou. Há dias, manchas roxas começaram a surgir pelo meu corpo pequenas, depois maiores. Surgem sem motivo. Sem lembrança de queda, de impacto. Apenas aparecem. Como se algo dentro de mim estivesse gritando, mesmo quando minha boca permanece calada. Não quero saber o que são. Não quero perguntar. Porque perguntar seria pedir uma resposta. E eu… eu não estou pronta para ela. O sangue no travesseiro me acorda mais do que qualquer pesadelo. Sangramentos repentinos, do nada. Começaram pequenos. Agora, são constantes. Persistentes. Como se meu corpo estivesse tentando me alertar. Como se estivesse… traindo. Mas não contei a ninguém. Porque, se eu contar, eles vão me olhar diferente. Vão me ver como fraca. E fraqueza, aqui, é uma sentença. Na nossa família, quem sangra em público perde o direito à força. Você engole a dor, sorri com os olhos opacos e segue em frente. Mesmo que por dentro esteja desmoronando. Hoje é dia de festa. Mais uma noite da máfia, onde as mulheres são exibidas como troféus e os homens brindam com sangue nos olhos. Nessas noites, a carne vale mais do que a alma. E as filhas, como eu, viram moedas de troca com perfume e salto alto. Me olhei no espelho por longos minutos. Cada vestido no guarda-roupa parecia um inimigo. Os decotes, as mangas curtas, os brilhos — tudo parecia gritar: “Olhe para mim.” Mas eu só queria me esconder. Escolhi um vestido preto, de mangas compridas. Leve o suficiente para não causar suspeita, mas fechado o bastante para esconder as marcas. Não era elegante. Não era provocante. Mas era uma armadura. Prendi o cabelo num coque baixo. Nada chamativo. A maquiagem foi sutil, quase ausente — só o suficiente para esconder as olheiras que se aprofundavam dia após dia. E mesmo assim, o espelho me devolveu um reflexo que mal reconheci. Vazia. Como se, por dentro, eu estivesse desbotando. Pensei em não ir. Em fingir dor de cabeça, febre, qualquer coisa. Mas essa decisão nunca foi minha. Meu pai exige minha presença. Diz que preciso “ser vista”. Como se eu fosse uma joia. Um bem. Uma peça que ele mostra com orgulho antes de entregá-la em alguma negociação silenciosa. Respirei fundo. Ajustei as mangas até esconder os pulsos. E abri a porta. As luzes do salão me agrediram assim que desci as escadas. Risos falsos, brindes barulhentos, olhares afiados. Era tudo tão milimetricamente ensaiado que doía. A orquestra tocava ao fundo, mas o som parecia distante, abafado por minha própria ansiedade. No último degrau, todos os olhares se voltaram para mim. Não porque eu quisesse — mas porque é assim que funciona. Na máfia, até o tecido do seu vestido é uma declaração. Caminhei até meus irmãos. Matteo, o mais velho, me observou por um segundo. Seus olhos me examinaram com precisão cirúrgica. Meu vestido cumpriu seu papel. Nenhuma marca visível. Ele assentiu, quase sorrindo. — Você demorou. — disse ele, entre um gole de uísque. — Eu não sabia o que vestir. — respondi, tentando parecer casual. — Está linda, como sempre. — disse Pietro, o estrategista, varrendo o salão com os olhos como se cada canto escondesse uma ameaça. — Obrigada. — murmurei, engolindo o desconforto que queimava na garganta. Senti os olhares. Todos eles. Como facas invisíveis cortando minha pele. Alguns eram de desejo. Outros de cálculo. Nenhum deles me via como eu realmente era. Naquele salão dourado, rodeado de riso falso e champanhe caro, eu era só mais um rosto bonito. Um nome pesado. Mas dentro de mim, algo gritava. Algo que implorava por fuga, por ar. Algo que dizia que minha vida estava prestes a mudar — e não por causa de alianças ou casamentos forjados por homens com mãos manchadas de sangue. Era algo mais sombrio. Algo que já crescia dentro de mim. Um segredo que meu corpo tentava revelar — e eu não queria ouvir. Enquanto os sons da festa cresciam ao meu redor, senti uma vertigem sutil, como se o chão tivesse oscilado por um segundo. Me agarrei ao balcão discretamente, fingindo que olhava para o copo de água com gás que Matteo havia pedido para mim. Estava gelado. Gélido como os arrepios que percorriam minhas costas. Minha visão ficou embaçada por um instante. Pisquei, tentando clarear os olhos, mas os rostos se tornaram vultos, vozes ecoando como se estivessem longe. Meu coração acelerou. A respiração falhou. Não podia desmaiar ali. Não ali. Não naquela festa. Me forcei a sorrir, a manter a postura. A mentira. Porque, naquele mundo, a aparência era tudo. E a minha verdade — a verdade é que eu ainda não tinha coragem de nomear — era fraca demais para sobreviver à luz daquele salão. Então, ergui o queixo e continuei fingindo. Mas, por dentro, comecei a entender: algo dentro de mim estava morrendo. E ninguém parecia notar. E talvez essa… fosse a parte mais dolorosa de todas.






