O sol da manhã atravessava as cortinas finas do quarto de Clara, espalhando um brilho suave sobre o lençol ainda amarrotado. Ela piscou devagar, demorando-se alguns segundos antes de sair da cama. Era mais um dia — igual a todos os outros desde aquela visita de Alaric.
Tentava convencer-se de que estava bem. Odiava admitir que a ausência dele lhe roubava o ar, mas era a mais pura verdade. Assim, todos os dias, vestia a armadura de normalidade e ia para o trabalho com a determinação de quem precisa enganar o mundo.
No escritório, mantinha a cabeça baixa sobre relatórios, mergulhava em planilhas como se números fossem capazes de abafar o som das lembranças. Conversava com colegas de forma automática, sorrindo aqui e ali, mas sem sentir nada. E quando o expediente acabava, corria para casa com a desculpa de cansaço, mas na verdade era medo: medo de que em algum canto da cidade seus olhos encontrassem os dele.
Porém, ao fechar a porta do apartamento, o silêncio voltava como um inimigo íntimo. O telefone em cima da mesa permanecia mudo, implacável. A ausência de mensagens ou chamadas era como um lembrete cruel: ela tinha decidido se afastar, e ele havia permitido.
Nos primeiros dias, Clara tentou ocupar-se. Comprou livros, assistiu a filmes, até tentou aprender receitas novas. Mas era inútil. Cada página virada trazia uma lembrança: de como Alaric citava autores de cor, de como parecia sempre um passo à frente. Cada filme a fazia pensar em como seria ouvi-lo comentar sobre os diálogos. Até o café da manhã tinha gosto de memória, porque Alaric sempre tomava café forte, sem açúcar, e agora esse detalhe banal a perseguia.
— Preciso seguir em frente… — murmurava para si mesma, quase como um mantra.
Foi Mariana, a colega insistente, quem a arrastou para fora da rotina. “Você precisa sair, Clara. Conhecer pessoas novas.” Contra a vontade, ela aceitou.
Naquela sexta-feira, encontrou-se com um grupo de colegas em um bar moderno da cidade. A música estava alta, as risadas preenchiam o ar, e por alguns instantes, Clara acreditou que poderia se distrair. Um dos amigos de Mariana puxou conversa, um rapaz simpático chamado Daniel. Ele falava com entusiasmo sobre viagens, sobre como adorava planejar roteiros e descobrir novos lugares. Clara sorriu, fez perguntas, fingiu interesse.
Mas, em meio à fala dele, sua mente traiu-a: lembrou-se de Alaric descrevendo Paris com precisão, de como parecia conhecer cada rua da cidade mesmo sem mapa. O contraste era doloroso. Daniel sorria, mas era um sorriso comum, leve demais para competir com a intensidade de Alaric.
Ela voltou para casa naquela noite com a sensação de estar vazia. Não era justo comparar, mas o coração não sabia ser justo.
Nos dias seguintes, repetiu o esforço. Aceitou mais encontros, jantares, cafés. Em todos eles, o padrão se repetia: homens gentis, agradáveis, até divertidos. Mas nenhum deles fazia seu coração acelerar. Nenhum deles a desarmava com um simples olhar.
Numa tarde chuvosa, encontrou-se em uma cafeteria com um rapaz que Mariana havia lhe apresentado. Ele era atencioso, falava sobre música, sobre bandas que ela até gostava. Mas, quando ele segurou sua mão sobre a mesa, Clara sentiu o corpo inteiro recuar por dentro. Não era certo. Não era o toque que ela queria. Fingiu receber uma ligação urgente e saiu apressada, encolhendo-se sob o guarda-chuva até chegar em casa.
Lá, trancou a porta e deixou-se desabar no sofá. As lágrimas vieram silenciosas, carregadas de frustração. — Eu não consigo… — sussurrou, cobrindo o rosto com as mãos.
Era como se cada tentativa de seguir em frente apenas deixasse mais evidente o quanto estava presa a ele.
Nos intervalos, as noites eram as mais cruéis. Clara acordava no meio da madrugada, com o coração disparado, após sonhos confusos em que Alaric surgia. Às vezes era um simples olhar. Outras, era uma conversa interrompida, como a do apartamento. Mas sempre havia um detalhe que a fazia acordar com a pele arrepiada e a garganta seca.
Para enganar a si mesma, Clara começou a evitar os lugares onde poderia cruzar com ele. Mudou o trajeto para o trabalho, deixou de frequentar a livraria que ele gostava, até parou de passar em frente ao restaurante onde certa vez tinham jantado com Isabelle. Mas, por mais que evitasse os espaços físicos, não conseguia escapar do espaço dentro dela. Ele estava entranhado demais.
Naquela mesma semana, aceitou outro convite. Um jantar formal, com colegas e alguns amigos deles. Vestiu-se com cuidado, passou batom vermelho para se sentir mais confiante. A mesa estava animada, todos conversavam alto, brindavam. Clara sorriu, fez piadas, até riu de verdade em alguns momentos. Mas, no fundo, sentia-se em outra dimensão.
Em certo instante, um dos homens da mesa a elogiou. Disse que seus olhos eram “profundos demais para uma mulher tão jovem”. Clara agradeceu, mas sentiu o estômago se revirar. Aquela frase, dita com um ar de charme barato, não tinha nada a ver com a forma como Alaric falava com ela. Ele não precisava de elogios: um único olhar dele já a desmontava inteira.
Na volta, recusou carona novamente. Caminhou sozinha sob o vento frio, os saltos ecoando pelas ruas quase vazias. Cada passo era acompanhado pela sensação de estar mentindo para si mesma.
Ao chegar em casa, tirou os sapatos e ficou de pé no meio da sala, observando o apartamento em silêncio. Queria acreditar que era possível preencher o vazio com rotina, com encontros, com vozes novas. Mas a verdade estava escancarada: nada substituía o espaço que Alaric ocupava.
Naquela noite, sentou-se diante da janela. A cidade brilhava lá fora, com seus prédios altos e luzes que piscavam sem parar. Lá embaixo, carros corriam em todas as direções, como se todos tivessem um lugar para ir. E ela? Onde estava o lugar dela?
O coração apertava cada vez mais. Lembrou-se das palavras de Isabelle no café: “Você o afasta de mim. Você o distrai.” Era como se aquelas frases tivessem se tatuado na mente. E se fosse verdade? E se tudo o que fazia era estragar o que não lhe pertencia?
Engoliu em seco, abraçando os joelhos. A solidão parecia maior que o apartamento inteiro.
Tentava convencer-se de que era forte, de que podia resistir, mas a realidade era outra: estava vivendo uma vida partida ao meio. Tentava seguir sem ele, mas cada tentativa apenas escancarava o quanto era impossível.
Clara fechou os olhos e deixou as lágrimas caírem em silêncio. Lá fora, a cidade continuava viva, mas dentro dela tudo estava em pausa.
E, pela primeira vez em semanas, admitiu: o afastamento não estava a salvando. Estava destruindo-a, pouco a pouco.