O salão estava iluminado demais para o fim de tarde. Luzes mornas refletiam nos vasos de cristal e nas paredes de mármore polido, projetando aquele brilho frio que sempre me fazia sentir deslocada. Isabelle me esperava em uma das poltronas próximas à janela, com um vestido bege simples demais para seus padrões — um gesto calculado para parecer casual.
Quando me viu, sorriu. Um sorriso largo, mas sem calor.
— Clara, querida. — sua voz escorreu suave, doce em excesso. — Que bom que veio.
Sentei diante dela, ajeitando a saia, com a sensação de estar entrando em território inimigo.
— Você pediu para me encontrar com tanta urgência… imaginei que fosse algo sério.
Isabelle suspirou, inclinando o corpo para frente como se carregasse um fardo imenso. — E é. — Seus dedos brincavam com a aliança dourada, rodando-a lentamente, como se a cada volta um pensamento mais sombrio surgisse. — Eu tenho tentado… mas Alaric anda tão distante.
Meu coração apertou. Eu já sabia onde essa conversa ia chegar.
— Talvez seja só o trabalho. — respondi, cautelosa.
Ela soltou uma risada baixa, sem alegria. — Trabalho? Com Alaric sempre há trabalho. Mas eu sei quando a frieza dele não tem nada a ver com negócios.
Mordi o lábio, evitando responder.
Foi então que seus olhos se ergueram para os meus, despindo-se de qualquer fingimento. — E desde que você apareceu… ele nunca mais foi o mesmo comigo.
Engoli seco. A acusação não veio em forma de grito, mas na suavidade calculada que feriu mais do que qualquer ataque direto.
— Isabelle, eu… — tentei me explicar, mas ela ergueu a mão, cortando minhas palavras.
— Não me entenda mal. Eu não estou te culpando… exatamente. — sua voz tremia no limite entre fragilidade e manipulação. — Mas você entende, não é? Você está no meio. Você o distrai, o afasta. Às vezes sinto que não sei mais como alcançá-lo.
Pisquei rápido, tentando disfarçar o impacto.
— Eu nunca quis atrapalhar. — murmurei.
— Mas atrapalha. — Isabelle sorriu triste, com os olhos marejados. — Ele é meu marido, Clara. E quando ele volta para casa depois de ter estado com você… não é comigo que ele está de verdade. — inclinou-se ainda mais, a voz em sussurro. — Você sente isso, não sente?
Fiquei muda. Porque, no fundo, eu sentia.
O silêncio foi sufocante. Isabelle se recostou novamente, voltando a vestir sua máscara perfeita. — Só queria que você pensasse nisso. — disse, calma, quase doce. — No quanto sua presença… nos desestabiliza.
Levantei pouco depois, agradecendo rapidamente, e saí sem olhar para trás.
O ar da noite me atingiu frio, mas não bastou para acalmar o coração. As palavras dela ficaram martelando em minha mente. “Você o afasta de mim. Você o distrai.”
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Naquela noite, fiquei revirando na cama até tarde. A imagem de Isabelle no café, sorrindo para outro homem, misturava-se com as lágrimas calculadas dela diante de mim. Será que eu havia interpretado errado? Será que era apenas amizade, um encontro inocente, e minha mente distorcida pelo desejo por Alaric havia inventado algo maior?
Quanto mais pensava, mais culpada me sentia. Talvez Isabelle tivesse razão. Talvez eu fosse mesmo a intrusa.
Nos dias seguintes, comecei a me afastar. Não atendia todas as ligações de Alaric, respondia às mensagens com demora, evitava me colocar à disposição. Dizia a mim mesma que era por autoproteção, mas no fundo era também para provar que eu não era a culpada.
Mas esse afastamento, ao invés de aliviar, só me corroía mais. Eu o imaginava ainda mais colado a Isabelle, e me perguntava se era esse o lugar que me restava: a sombra.
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E então, numa noite de chuva, a campainha tocou.
Meu coração disparou antes mesmo de abrir a porta. Eu sabia quem era.
Alaric estava ali, o casaco escuro molhado pela chuva, o olhar cinzento ainda mais intenso sob a luz fraca do hall.
— Posso entrar? — perguntou, embora já estivesse avançando.
— Você sempre entra. — respondi, fechando a porta atrás dele.
Ele percorreu a sala com os olhos, como quem fiscaliza território. Depois se virou para mim, direto:
— Você anda distante. — disse, sem rodeios. — Quase não me atende.
Sentei-me no sofá, tentando parecer calma. — Estive cansada. Trabalho, rotina, coisas assim.
Ele se inclinou para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos. — Cansada de mim?
A pergunta veio suave, mas com o peso de um julgamento.
— Eu não disse isso. — murmurei.
Ele me observou em silêncio. — Mas pensou.
Levantei os olhos, surpresa pela precisão dele. O rosto de Alaric permanecia sereno, mas era nessa calma que residia a ameaça.
— Alaric… — hesitei, escolhendo as palavras com cuidado. — Você acha que está tudo bem entre vocês?
Não citei nomes, mas ele sabia. Isabelle.
Ele recostou-se, cruzando uma perna sobre a outra, como quem tem todo o tempo do mundo. — Por que pergunta?
— Curiosidade. — tentei soar leve. — Você parece sempre… no controle. Às vezes me pergunto se alguma coisa te afeta de verdade.
Um sorriso quase debochado curvou seus lábios. — E isso te incomoda?
— Não sei. Talvez. — respondi, apertando o livro que repousava em meu colo. — Só queria entender.
— Entender o quê?
— Você. — a palavra escapou antes que eu pudesse evitar.
Os olhos dele estreitaram, e a atmosfera ficou mais densa.
— Isabelle e eu… — começou devagar, como se cada sílaba fosse medida. — Cumprimos nossos papéis. Isso basta.
Engoli seco. Papéis. Essa era a definição dele para o casamento. Não amor, não escolha: papéis.
— E se um dia um desses papéis falhar? — arrisquei.
Ele me encarou, fixo. Depois suspirou. — Todos falham, Clara. A diferença está em como escolhemos lidar com isso.
O silêncio entre nós foi cortante. Eu queria falar do que tinha visto no café, queria despejar minhas suspeitas, mas algo me travava.
Ele se levantou, caminhou até a estante, fingindo examinar os livros. — Você está diferente. Como se guardasse algo.
Meu corpo inteiro gelou.
— Não estou.
Ele se virou devagar, o olhar frio. — Está. Eu conheço você.
Respirei fundo e forcei um sorriso. — Talvez esteja apenas aprendendo a esconder melhor.
A resposta fez algo brilhar em seus olhos. Interesse. Ele se aproximou, inclinado sobre mim.
— Eu não gosto de segredos.
— Então não me force a tê-los. — retruquei, a voz trêmula, mas firme.
Por um instante, a sombra de um sorriso passou por seus lábios. Ele se afastou, pegou o casaco e foi em direção à porta.
— Cuide-se, Clara. — disse, antes de sair. — Não quero que se desgaste com o que não lhe pertence.
E então ele se foi, deixando para trás o mesmo silêncio sufocante que sempre carregava consigo.
Fiquei parada no meio da sala, o coração em disparada. Eu não sabia mais o que era verdade e o que era ilusão. Só sabia que, mesmo quando tentava me afastar, Alaric sempre encontrava uma maneira de me puxar de volta.