Os dias parecem correr num ritmo imposto, como se minha vida tivesse perdido qualquer autonomia. Vou ao trabalho, volto para casa, tento preencher as horas com leituras, compromissos e silêncio, mas sempre há um ponto em comum: Alaric.
Ele aparece sem anunciar, impõe-se sem pedir, e me envolve num círculo impossível de romper. Ainda que Isabelle esteja sempre ao lado dele nos jornais, no papel de esposa perfeita, eu sei que continuo sendo a presença silenciosa que ele não permite afastar.
E, ironicamente, é justamente por isso que noto primeiro.
..
É uma tarde qualquer, dessas em que eu decido fugir da rotina sufocante indo até um café discreto perto do centro. Carrego um livro na bolsa, na esperança de perder alguns minutos entre páginas que não falem de Alaric, Isabelle ou do mundo que eles governam.
Mas quando entro, o ar quente e o aroma de café torrado não conseguem distrair meus olhos.
Isabelle está lá.
Sentada em um dos cantos, de vestido simples demais para seu padrão usual, óculos escuros apoiados no cabelo. E à frente dela, um homem que não reconheço. Não é executivo, não tem o porte altivo da elite. É mais jovem, olhar intenso, sorriso que ela corresponde com um brilho diferente do que mostra nas revistas.
Eles não se tocam. Não há nada escandaloso. Mas há intimidade. Uma inclinação maior do que o necessário, um riso abafado demais, um olhar longo demais.
Meu coração acelera.
Penso em me levantar, ir embora e fingir que não vi. Mas meus pés não se movem. Fico ali, observando por alguns segundos, até que Isabelle percebe minha presença.
Ela congela. O sorriso se esvai por um instante, mas logo se recompõe, como se vestir a máscara fosse automático.
— Clara! — exclama, levantando-se rapidamente. O homem diante dela parece desconfortável, evita me encarar. — Que coincidência te ver aqui.
Forço um sorriso. — Coincidência mesmo.
— Estava só… conversando com um amigo de infância. — A justificativa vem apressada demais.
Assinto, fingindo acreditar, mesmo sabendo que há algo errado na maneira como ela ajeita os cabelos, como mantém o tom controlado.
— Claro. Não vou atrapalhar. — Seguro firme a alça da bolsa e caminho até o balcão.
Não olho para trás. Não preciso. Já vi o suficiente.
À noite, em casa, revivo a cena incontáveis vezes. Talvez fosse mesmo um amigo. Talvez eu tenha interpretado errado. Mas dentro de mim, algo grita: Isabelle não é a esposa perfeita que aparenta ser.
E o mais cruel é perceber a ironia. Eu, que me escondo nas sombras do casamento dela, agora sou testemunha de que talvez ela também viva escondendo algo.
Será que Alaric sabe?
A pergunta me corrói. Ele é frio, calculista, impossível de enganar. Se eu percebi, ele já deve ter notado muito antes.
Mas por que não faz nada? Por que continua a exibir Isabelle ao seu lado em todos os eventos, como se ela fosse intocável?
Talvez porque seja útil. Talvez porque, para ele, Isabelle não passe de um papel bem desempenhado na engrenagem do império Moretti.
E é nesse instante que percebo a diferença mais cruel: Isabelle pode traí-lo, mas eu nunca poderia. Porque, para ele, eu não sou um papel. Sou… algo que nem eu mesma consigo nomear.
Dias depois, Alaric aparece novamente sem aviso. B**e à minha porta tarde da noite, de terno impecável, o ar cansado, mas os olhos afiados.
— Por que não atendeu minhas ligações? — pergunta direto, entrando sem esperar convite.
— Estava ocupada.
— Com quem?
— Com a minha vida, Alaric. — Minha voz sai mais firme do que deveria.
Ele se aproxima, frio, avaliando minha expressão como quem lê uma equação complexa.
— Está estranha. — Sua afirmação é cortante. — O que aconteceu?
Engulo seco. Por um segundo, penso em contar o que vi. Mas algo me impede. Não sei se é medo de sua reação ou receio de me tornar cúmplice de uma verdade que ele talvez prefira manter oculta.
— Nada. — Respondo baixo. — Só cansada.
Ele não acredita. Sei disso pelo modo como estreita os olhos, pelo silêncio que se prolonga. Mas, ao invés de pressionar, apenas solta um suspiro e se aproxima mais.
— Você continua sendo prioridade. — Ele fala como se fosse uma sentença irrevogável.
E eu sinto a crueldade dessa frase como uma lâmina. Porque, no fundo, Isabelle pode não ser fiel, mas continua sendo a esposa. Eu, por outro lado, sou a prisão voluntária da qual não consigo escapar.
Na semana seguinte, os rumores começam. Pequenas notas em blogs de fofoca, fotos mal enquadradas, manchetes insinuando que Isabelle foi vista sem Alaric em lugares discretos.
Nos jornais sérios, nada. Isabelle controla a imprensa como controla o próprio sorriso: impecavelmente.
Mas eu sei. Eu vi.
E cada vez que lembro do olhar dela naquele café, tenho certeza de que há algo escondido.
O que me consome não é apenas a infidelidade em si, mas a forma como isso distorce ainda mais meu lugar na vida de Alaric. Se Isabelle o trai e ele aceita, por conveniência, o que significa ser prioridade para ele?
Sou apenas mais uma peça nesse jogo?
Encontro Alaric novamente em um jantar de negócios. Isabelle está presente, linda e radiante, distribuindo sorrisos. Ele, como sempre, impenetrável.
Em determinado momento, nossos olhares se cruzam. Eu penso em perguntar, em soltar qualquer palavra que denuncie o que sei. Mas ele me encara com aquela frieza calculada que me paralisa.
É como se dissesse, sem falar: Não se meta.
E eu obedeço. Porque com Alaric, sempre obedeço.
Mas dentro de mim, algo muda.
Agora não é apenas desejo contido, nem só a prisão emocional que ele me impõe. Agora há raiva. Raiva de Isabelle, que pode brincar com o que eu nunca tive. Raiva de mim mesma, por continuar no mesmo lugar.
E, acima de tudo, raiva de Alaric. Porque, de algum modo, ele sabe. E mesmo assim me mantém aqui, como se eu fosse incapaz de escolher outro destino.
Naquela noite, deitada em minha cama, percebo que talvez a infidelidade de Isabelle não seja apenas uma ameaça ao casamento deles. É uma ameaça à minha própria sanidade.
Porque, se ela ousa traí-lo… talvez, pela primeira vez, eu também comece a pensar em desobedecer.