Mundo de ficçãoIniciar sessãoEm Milão...
Dante adormeceu na poltrona, o corpo pesado, os pensamentos presos a lembranças antigas e perigosas. Primeiro vieram os flashes da infância em Liège: o pai rindo alto, a mãe cantando na cozinha, a paz que ele acreditava ser eterna. Mas, como sempre, as memórias doces foram engolidas pelo amargor dos anos difíceis, da luta silenciosa, da dor de ver tudo desmoronar por causa da traição de Dario Mancini, o pai de Marco. A revolta era sua companheira mais fiel. Nunca estivera completamente sozinho, a raiva e o desejo de vingança estavam sempre lá. Em verona.... Quando o sol invadiu o quarto de Angeline, ela abriu os olhos devagar. O pé doía menos. Colocou primeiro o pé bom no chão e depois o machucado, sentindo o tapete macio amortecer seu peso. Levantou-se com cautela, apoiando-se na cômoda. Caminhou mancando até a porta. Trancada. A maçaneta girou duas vezes, inútil. Ela fechou os olhos, respirou fundo, exausta. “Me trancaram de novo.” O sarcasmo era a única coisa que a mantinha de pé. Voltou para a cama, abriu a mochila e tirou o celular e a arma roubada, uma FN Five-Seven, preta, lisa, fria. Passou o dedo pelo metal, a pintura fosca, elegante. Teria sido cômico... se não fosse trágico. Guardou-a no fundo falso da gaveta ao lado da cama. “Como vou sair daqui?” Olhou para o pé inchado. Não podia pular a janela desta vez. A verdade caiu sobre ela com um peso amargo: “Não tem jeito… só ele mesmo.” Marco. Sempre ele. Quanto mais fugia, mais presa ficava. Deitou-se novamente, encarando o teto com uma irritação impotente. Enquanto isso, no centro da cidade… No estande de tiro particular, cada disparo de Marco ecoava como desabafo. Bruno, seu amigo de longa data, sempre sorridente e bajulador, o observava. — Você devia saber que ela ia aprontar. Não é novidade. Comentou. Marco desviou um olhar duro para ele. — É verdade, insistiu Bruno, apertando os lábios. — Ela parece uma criança mimada. Desde quando vocês vivem essa guerra? — Angeline é só uma menina presa num corpo de mulher… — Marco respondeu, recarregando a arma, se lembrando dos olhos de Angeline quando o viu com Margaret, tinha certeza que ela o amava. Bruno ergueu as sobrancelhas. — Ela tem vinte anos. — Sim… Marco murmurou, mirando, mas nenhuma experiência. Bruno arregalou os olhos. — Você quer dizer que ela… Marco virou a arma para ele, sem paciência: — Você não tem nada melhor pra fazer? Bruno ergueu as mãos, rindo sem graça. — Já estou indo. Tenho que experimentar o traje pro jantar em Milão. Os chefes dos clãs estarão lá. Você e seu pai vão? — Claro. Disse Marco, acionando o gatilho. Disparou novamente, o tiro seco e afiado, deixou a arma, seus olhos frios, pensamento ainda no que acontecera na noite anterior. Ao sair do estande, avistou Margaret numa cafeteria, teatral e sorridente ao lado de uma amiga. O estômago dele revirou. Se não fosse pela investida ridícula dela, Angeline não teria visto nada. E agora ele teria que reverter um desastre. Quando abriu a porta da Lamborghini, percebeu as duas acenando, com sorrisos postiços, falsos. Ele encarou-as com frieza. Deixou o carro, caminhou sem emoção até elas. — Como está Angeline? Perguntou sem cumprimentá-las. As duas murcharam. — Papai a trancou no quarto. Disse Margaret, com ar de triunfo. — O médico foi vê-la? Perguntou Marco, a voz baixa e grave. — Ah, não.... não é nada demais. Ela exagera só pra chamar atenção. Respondeu Margaret, tentando esconder o riso. A amiga permaneceu calada, não sabia metade do que havia acontecido. Marco inspirou fundo. — Você vai explicar para ela o que aconteceu ontem. Vai limpar essa bagunça. — Mas eu… você também queria… Tentou Margaret. Ele soltou um riso curto, cético. — O que está dizendo, Margaret? Você se jogou em cima de mim. — Arrume isso! Não é um pedido, é uma ordem! O tom dele era gelo puro. Virou-se e entrou no carro. O motor rugiu, e os pneus cantaram no asfalto enquanto se afastava. Margaret bateu na mesa com a mão, fazendo o café respingar. — Não sei o que ele vê naquela Angeline! Explodiu. Margaret com raiva, enquanto pegava guardanapos de papel e tentava freneticamente limpar seu vestido. Na mansão, Angeline tomava banho sentada em um banquinho, o tornozelo ainda sensível, estava com fome. Em Milão... Dante analisava documentos no escritório amplo. A luz filtrada pelas árvores criava sombras suaves na parede. Oton entrou com uma bandeja de café e waffles. Sobre a bandeja, um envelope dourado, lacrado com cera vermelha e um brasão. Dante pegou a xícara mas seus olhos permaneceram no envelope. Rompeu o lacre com o abridor de prata. Oton observou. Dante não demonstrava absolutamente nada. Nem frieza. Nem calor. Só aquele vazio calculado, o mesmo que sempre o tornava impossível de ler. Ele correu os olhos pelo convite. Uma curva discreta surgiu em seus lábios. — Mande fazer um traje. Tenho um jantar para ir. Oton assentiu. Dante olhou para o notebook ao lado, na tela uma manchete: “Corpo de chefe de contrabando internacional é encontrado nos trilhos de trem. Polícia suspeita de execução.” A foto mostrava o corpo desfocado, mas o rosto ensanguentado deixava claro: era o mesmo homem que Dante havia lançado pela janela do vagão, depois que ele tentara atirar contra ele na estação de Milão. Dante rolou a página devagar. A imprensa fazia o que sempre fazia: transformava um ajuste de contas em espetáculo. Criavam teorias, montavam versões dramáticas… aquilo o divertia. Nenhum deles ousaria sequer cogitar que Dante Laporte estivesse por trás de algo tão bruto. A polícia apontava para guerra entre quadrilhas menores, disputa de território, um ataque calculado entre gangues rivais. Uma conclusão cômoda e absolutamente útil para ele. Dante estreitou os olhos, um sorriso lento surgindo. Fechou o notebook. Recostou-se na cadeira de couro, virando-se para a janela enquanto o sol fraco atravessava as árvores. Pensou no jantar. Mas dois olhos verdes surgiram na memória antes de qualquer pensamento sobre negócios. A garota do trem. Dante ergueu a mão até os próprios lábios, tocando-os de leve. Ainda sentia o gosto adocicado do beijo. Lembrança do corpo dela, trêmulo, sob o seu e a audacia dela em roubá-lo.






